“A chapa 11 é o direito à voz e a vez das advogadas negras”, diz Raquel Preto

Enviado por / FonteKátia Mello

Artigo produzido por Redação de Geledés

Raquel Preto compõe como tesoureira a chapa “Coragem e Inovação”, liderada pelo atual secretário-geral da OAB de São Paulo, Caio Augusto, para concorrer à presidência da entidade no próximo dia 29. O grupo que recebeu o número 11 conta com a maior participação de mulheres: 36% com lideranças de várias áreas. Em entrevista à coluna Geledés no debate, a advogada fala sobre a importância de se ter nessa chapa um bloco voltado especificamente à advocacia negra e ainda contar com a representação dos LGBTI+.

Graduada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), com Doutorado em Direito Tributário pela USP, Raquel Preto ainda discorre sobre o poder de transformação da presença feminina na cúpula das empresas, principalmente nos conselhos administrativos.

Geledés– O advogado Caio Augusto registrou, no dia 16 de outubro, a chapa “Coragem e Inovação” para as eleições da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo deste ano. Como tesoureira, você pertence à essa chapa, que recebeu o número 11.  A que veio essa chapa e o que ela representa para as advogadas, em especial, as negras?

A chapa 11 “Coragem e Inovação” representa uma real possibilidade de mudança da OAB no cenário de São Paulo. Isso porque nunca antes na história desse país, houve uma chapa com tamanha participação de mulheres. Dentre as cinco que disputarão as eleições no próximo dia 29, somos a quem tem maior presença de mulheres, com 38% das integrantes que ocupam espaços diversos na chapa. São dez diretorias das quais cinco são ocupadas por mulheres. Metade da Caixa de Assistência dos Advogados de São Paulo (CAASP) é capitaneada por mulheres; no Conselho Federal, duas mulheres estão entre os seis; na diretoria, duas mulheres estão entre os três. Ou seja, nos preocupamos não só com a quantidade, mas com a qualidade das participantes, lembrando a história dessas mulheres que se deram à causa feminista. A chapa se esforçou muito, diante de um cenário diverso institucional em que a presença das mulheres é difícil, em se atentar ao tema. Portanto, não à toa acabou sendo a que tem a maior quantidade de mulheres dentro dos 176 participantes.

Outra preocupação, para ser democrática e participativa, foi em relação às lideranças negras. Procuramos essas lideranças nos movimentos, sendo que sete são representantes da advocacia negra, como é o caso de Maria Sylvia, do Geledés, e Diva Zito. São mulheres e homens da advocacia negra que como militantes defendem a bandeira da igualdade racial neste país há muitos anos. Mais do que isso, um dos 11 blocos das propostas é inteiramente dedicado à advocacia negra, escrito pela jovem advocacia negra e por lideranças históricas. O lugar de fala foi respeitado, não houve apropriação, e essa é a grande diferença de nossa chapa. Sendo assim, ela representa uma mudança absoluta de abordagem; representa ainda o reconhecimento de erros históricos que têm sido cometidos pela OAB em anos.

Não tem cabimento que a instituição não saiba dizer, por exemplo, tanto no Estado de São Paulo como no país, o percentual da advocacia negra que compõem os quadros. Isso é manter invisíveis as pessoas que merecem um olhar específico, para que fossem resguardados seus lugares de fala quando endereçassem as questões próprias da advocacia negra. A atual gestão de Marcos da Costa, que tenta seu terceiro mandato na OAB, não tem hoje nenhum advogado negro ou advogada negra; não tem hoje nenhum advogado negro ou advogada negra no Conselho.

Demos ênfase às mulheres negras, porque sabemos que nestas problemáticas, nas falhas democráticas, institucionais, públicas e privadas que existem no Brasil, são elas, que compõem um quarto da população brasileira, as que mais sofrem com as mazelas do racismo estrutural. Portanto, a chapa 11 é o direito à voz e a vez das advogadas negras. Sabemos que essas mulheres negras são capazes de mudar a lógica do mundo.

Preocupamos-nos ainda com a representação da advocacia LGBTI+, com várias lideranças dentro da chapa. Isso sim é fazer um real esforço. São 330 mil advogados e advogadas para disputar a maior seccional da OAB de todo o país. A OAB precisa dar bons exemplos, e para isso necessita ser realmente democrática, representativa, trazendo para dentro de si todas as cores, todas as orientações sexuais, as divisões de gênero, de idade, que estão espraiadas pelo Estado de São Paulo.

Foto: Sérgio Zacchi

“Lamentavelmente, preconceitos e vieses inconscientes sobram em nosso país a ponto de ser impossível que mulheres, negros, LGBTI+s ou diversos outros grupos minoritários consigam de fato trilhar seus percursos de vida apenas com base nesse conceito genérico de meritocracia.”

Geledés– Em apresentação do TED São Paulo, no ano passado, você debateu a meritocracia, afirmando que ela só é forte e pujante, se o ponto de partida for o mesmo para homens e mulheres. Caso contrário, o que existe é o fundamentalismo de gênero. O que significa essa afirmação?

A meritocracia é um conceito idealmente formulado no contexto atual da sociedade contemporânea, e em especialmente no Brasil, um bocado utópico. Na verdade não há em como ter meritocracia diante de tantas desigualdades. São desigualdades de gênero, raciais, econômicas financeiras, de modo a ser impossível a todos humanos que compõem a população brasileira consigam competir de maneira meritocrática em ambientes diversos, sejam eles profissionais, institucionais, espaços públicos ou privados.

Lamentavelmente, preconceitos e vieses inconscientes sobram em nosso país a ponto de ser impossível que mulheres, negros, LGBTI+s ou diversos outros grupos minoritários consigam de fato trilhar seus percursos de vida apenas com base nesse conceito genérico de meritocracia. Isso ganha especial ênfase na questão de gênero porque se não há meritocracia, e na verdade não há uma vez que o ponto de partida não é o mesmo, a sociedade fica aprisionada ou  de forma consciente, com o preconceito, ou de forma inconsciente, à noção de que homens teriam melhor condição de ocupação das posições de comando e das cúpulas de instituições do Estado, das empresas. É aí quando surge o fundamentalismo de gênero. E por que fundamentalismo?

Porque acaba funcionando de forma segregacionista e de aprisionamento de mulheres aos setores e posições que a sociedade patriarcal entende como cabíveis para elas. Somos segregadas a ocupar determinados espaços previamente demarcados. E isto funciona de uma forma absolutamente potente e aniquiladora. A sociedade é incapaz de sair destes grilhões e destas algemas culturais que acabam por nos aprisionar e nos retendo em nosso potencial. Metade da capacidade laboral e criativa do planeta está nas mulheres. Sabemos que podemos e todos os estudos demonstram isso. Mas esse aprisionamento cultural, nos retém, nos detém e nos contém. Isso é fundamentalismo de gênero.

Geledés– Na mesma palestra, você destaca que os primeiros colocados na lista de países de igualdade de gênero no trabalho são Islândia Finlândia, Noruega, Suécia – nações países nórdicas que há décadas implantaram ações afirmativas governamentais. Como as cotas deveriam ser implantadas no trabalho e de que forma os executivos de grandes empresas deveriam se envolver nestas questões?

A presença das mulheres nos conselhos administrativos das grandes empresas faria uma transformação estrutural interna. Porque são os órgãos máximos que decidem o futuro e as escolhas estratégicas de encaminhamento das grandes companhias. Mais do que a diretoria executiva, o chamado C-Level, o diretor administrativo, o financeiro e tecnológico, são os conselhos que tomam as decisões de orientação geral para a gestão. O conselho de administração funciona acima dessa estrutura de execução e administração.

Natalia Senna

Ele estabelece as metas, as diretrizes a serem alcançadas; determina a maneira que as companhias vão ser dirigidas, estabelece ainda alianças e como vão ser estruturalmente organizadas. Portanto, a ausência de mulheres faz com que esse conselho tenha um olhar enviesado. Apenas 7,8% dos conselheiros hoje são mulheres e ainda por cima, mais dessa metade são herdeiras. Ou seja, elas não foram escolhidas por sua expertise de gestão e sim pelo controle acionário que têm sobre as empresas. O olhar da mulher é diferente e que bom que o seja! É mais rico, mais interessante e mais criativo. A voz de uma ou mais mulheres nos conselhos, e o ideal seria que os conselhos fossem compostos por 30% delas – e estudos comprovam que esse número seria de real impacto, de uma real transformação.  Essa presença feminina faria com que elas rapidamente endereçassem a questão da evolução nas carreiras profissionais em direção aos cargos mais elevados. Os números comprovam isso e contra fatos e argumentos, não há o que discutir. Teríamos então um canal empático dentro desse conselho administrativo e olhar para os demais membros a ponto de se dizer: tem alguma coisa de muito errado nessa companhia. Ou até de perguntar: as mulheres não querem ou não têm espaço?

Se você quiser ser diverso e inclusivo, veja o que acontece em seu ambiente. Afinal de contas, 51% da população brasileira é composta pelas mulheres. E já passamos da hora em dizer que não há mulheres competentes. Está cheio de mulheres gabaritadas, mas elas simplesmente não são lembradas. Se houver um esforço, um engajamento, uma provocação de uma empresa especializada que está fazendo a consultoria para este tipo de coisa, aí será lembrado um nome de uma mulher.

Mas não que faltem mulheres competentes, pois ao contrário, estão sobrando. As diretorias executivas também são baixamente povoadas por mulheres no Brasil: 7,5%.  Ou seja, 92,5% das companhias são dirigidas por homens, e fica evidente que há um desvio. Os números mostram que quando as mulheres estão na cúpula, as empresas se tornam mais rentáveis, com maior retorno aos investidores. Elas, inclusive, têm mais segurança jurídica.

De modo que, não ter mulheres nas altas cúpulas, é no mínimo burrice, porque a empresa vai deixar de ganhar de mais dinheiro, deixar de distribuir lucros para seus acionistas, de gerar mais resultados positivos e será muito menos competitiva. Cada vez mais a humanidade tem que se encaminhar para as boas práticas que são as evidenciadas por números e fatos de transformação positiva.

Geledés Entre as suas afirmações, está a de que a presença feminina na cúpula das empresas faz com que essas companhias aumentem o EBIT (lucro antes dos juros e impostos) em 48% e as ações sejam valorizadas em 17% a mais, gerando maior riqueza e qualidade demográfica. Se isso já acontece em países nórdicos, por que nações como o Brasil são resistentes à implantação de cotas de gênero?

São inúmeras as pesquisas que mostram que quando as empresas têm uma real participação de mulheres de gestão intermediária para cima, notadamente nos cargos de superintendência e diretoria executiva e principalmente nos conselhos de administração, os indicadores de performance financeira são maiores e melhores do que que àquelas em que isso não ocorre. No meu TED, por exemplo, eu mostro um gráfico feito pelo famoso banco suíço Crédit Suisse. Se há uma coisa que eles sabem mensurar é a rentabilidade positiva de empresas, haja visto que eles querem fazer investimento nas melhores empresas que estejam operando. Há outros estudos também das Universidade Comercial Luigi Bocconi (Milão, na Itália) e da Universidade de Harvard (Boston, EUA). Portanto, não há mais dúvidas. A sociedade brasileira não lida com isso e esse assunto aqui é pouco discutido. Sou militante dos direitos femininos há anos. Antes, era muito mais difícil em endereçar determinados temas, porque não se estudava isso. O movimento feminista vem crescendo e vem impactante, e o compartilhamento de dados de movimentos feministas e ONGs, e até a própria mídia têm dado visibilidade a esse tema. Vivemos o que chamo de “Primavera Feminista”. Antes tínhamos muitas discussões filosóficas, mas não havia esse compartilhamento de dados. Tudo isso é muito bom.

Se está baseada em informação de qualidade, o argumento fica muito mais forte e potente. A humanidade percebeu que estamos perdendo bilhões de dólares. O Fórum Econômico Mundial tem estudos sobre isso, assim como ONU e Banco Mundial. Se houvesse equidade de gênero produziríamos muito mais riquezas e um planeta muito melhor, mais feliz e estável, muito mais adequado em termos de distribuição de renda. O Brasil resiste porque é um patriarcado, padece de vários ismos limitantes e ruins como machismo, sexismo, racismo. E temos muitas dificuldades de superar esses problemas, porque o brasileiro não acha que é machista, não é racista nem patrimonialista. A voz e a vez de quem tem dinheiro é mais importante, quem tem pele branca tem privilégio sim, quem é mulher tem mais dificuldade que homem. Isso é dado estatístico. O Brasil lida muito mal com essas questões. É um país muito pouco autocrítico somado à essa tradição patriarcal, diferente da cultura francesa, do existencialismo, que se auto-questiona ou do racionalismo – muito importante na cultura alemã. No Brasil tem aquele pensamento de ser amigo de todo mundo, que em plantando tudo dá, tudo é mitigado, tudo é minorado.

Faltam museus que mostrem o que foi a escravidão, também falta um outro museu mostrando o que foi a ditadura, que é um histórico que não pode ser negado. O Brasil mistura todo esse caldo machista. Não teríamos menos mulheres que a Arábia Saudita ou Afeganistão se não fôssemos machistas. As mulheres possuem uma dificuldade enorme de ocupar espaços em ambientes públicos de poder. O primeiro passo é que nossos governantes reconheçam o racismo e sexismo. Quando você diz que isso é mimimi, desautoriza quem é vítima dessa situação. Não lida com esse problema, mas aniquila-o linguisticamente. E aí não saímos do lugar. A iniciativa privada é muito mais eficiente que o poder público. E as empresas perceberam que ter mais mulheres é importante nas suas estruturas, apesar de ser de forma lenta. Segundo projeções da ONU, só vamos superar isso daqui a 150 anos, apesar de sabermos o que é necessário para lidar com essas questões.

 ‘Não ter mulheres nas altas cúpulas é no mínimo burrice, porque a empresa vai deixar de ganhar mais dinheiro, deixar de distribuir lucros para seus acionistas, de gerar mais resultados positivos e será muito menos competitiva.”

Geledés – Outra questão em voga nos dias atuais é sobre a corrupção, mas alguns sustentam que com mulheres na liderança, esse fenômeno tende a diminuir. Por que a dificuldade dessa percepção?

As pessoas resistem a isso. Primeiro porque existe uma falta de conhecimento efetivo sobre estudos reais a respeito desse assunto. Com exceção de algumas organizações sociais, a população em geral está alheia à uma compreensão mais aprofundada sobre a corrupção. Se você não conhece o assunto, fica difícil dialogar de uma forma mais crítica. A despeito de se falar muito de corrupção, o entendimento médio da população é baixo. Não existe um compartilhamento de informações de boa qualidade a respeito das boas práticas.

Como não se conhece isso, muito menos a característica de que as mulheres são menos afetadas pela prática de corrupção. Há quem diga que as mulheres são menos corruptas pelo fato de ocuparem menos cargos de direção. Existe um traço cultural que distingue homens e mulheres. As mulheres têm uma preocupação maior com a prole, isso vem desde a idade da pedra lascada, por conta das características fisiológicas e hormonais da mulher, a gestação, a ligação com os filhos. Isso tem um traço cultural. Defendo que as novas masculinidades devem lidar com essa questão da gestação, da gestão dos filhos de forma diferente.

Posto isso, a questão é que a mulher tem uma preocupação maior com o coletivo, tende a ser mais colaborativa, e os homens tendem a assumir uma postura mais egoísta, a lidar mais com a cobrança sobre o resultado financeiro e o sucesso de uma forma diferente. Eles ocupam o espaço público há muito tempo de uma maneira masculina, e as mulheres ocupam esse espaço de forma diferente. Por tudo isso, os homens têm essa incidência maior em relação à corrupção. A dificuldade é reconhecer os seus próprios problemas, ou seja, no exercício da autocrítica. Tendemos a jogar a culpa no outro. O brasileiro primeiro aponta para outro, para depois, a depender dos acontecimentos, a olhar para si mesmo. Os tratos culturais são bem complicados, eles não favorecem a transformação.

Geledés – Acabamos de sair de eleições em que se mantêm a máxima de poucas mulheres no legislativo brasileiro, confirmando a posição do Brasil em 155º. em relação ao tema, enquanto que a Noruega, por exemplo, ocupa a 15º. posição. Você já chegou a ressaltar que temos menos mulheres no legislativo que a Arábia Saudita. Por que esse número tão reduzido? E por quê mulheres não votam em mulheres?

Esse pergunta me assombra há décadas. Em 1988, na Assembleia Nacional Constituinte já era evidente a baixa participação feminina. Quando fui pela primeira vez ao Congresso já percebi essa dificuldade, pois fui fazer um trabalho de advocacy para uma grande empresa e era a única mulher da comitiva. A cada gabinete que visitava, só encontrava homens. Entra e sai governo e a participação das mulheres continua reduzida.

Parafraseando Sueli Carneiro, que disse que “entre a direita e a esquerda, sou negra”, eu digo entre a esquerda e a direita, sou mulher. Tem gabinetes ministeriais com nenhuma mulher e outros com algumas poucas, o que também ocorre nos nos governos estaduais ou nas prefeituras. Essa situação é muito grave; é o maior déficit democrático na nação brasileira, porque 51% da população feminina não está representada nos três poderes e são eles que sustentam o estado de direito democrático. Por isso, coisas excrescentes ocorrem todos os dias nos tribunais, nas repartições públicas e nos governos. Não é à toa que cinco desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo absolveram o avô que estuprou a neta, sob a alegação de que a neta provocara o avô. Será que se houvesse uma composição paritária, essa decisão seria a mesma? É claro que as mulheres também são machistas. Machismo, assim como o racismo é um problema estrutural que não vê cara nem coração. Todos sofrem do mesmo mal e continuamos a ser criados por mamães e papais erradamente, alguns mais e outros menos. Como estão fora de grandes cúpulas como federações e confederações que são grandes instituições de pressão. A própria OAB no seu conselho federal tem uma representação pífia de mulheres. A OAB-SP nunca foi presidida por uma mulher.

Em média, a representação chegava a 10% de mulheres. Os espaços públicos não são considerados espaços naturais de ocupação feminina. O lugar dela é no jardim da casa e não na praça pública. Por isso, nós mulheres nem conseguimos andar em paz pelas ruas porque nossos corpos são tomados como bens públicos. Os homens vão falando palavras chulas na medida em que caminhamos. É uma reiteração de comportamentos de dominação. Na cultura machista ultra patriarcal arraigada do Brasil, esse espaço público não é um espaço para o feminino. A grande revolução no Brasil não é a da distribuição de renda, que precisa acontecer, mas é a de equidade de gênero e aí a renda seria distribuída facilmente. A maior disrupção da sociedade humana seria o respeito à condição feminina, à equalização de posição entre homens e mulheres. No Brasil, existe uma dificuldade enorme das mulheres votarem numa candidata mulher questionando sua competência. Há uma dúvida preconceituosa se ela estará bem no espaço legislativo. Até três anos atrás, não existia um banheiro feminino nas dependências do Senado. O desenho arquitetônico sequer pensou que as mulheres poderiam precisar de um banheiro. Essas micro violências da condição feminina, que só reproduzem a estrutura do patriarcado, ou seja, que o gênero masculino seja prevalente sobre o gênero feminino, precisam ser combatidas na raiz. Isso só muda com o engajamento de lideranças e da sociedade organizada ao se mobilizarem e cobrarem mudanças estruturais e culturais

Geledés Você é ativista de Direitos Humanos há ao menos duas décadas. Como analisa a declaração do presidente eleito, Jair Bolsonaro, de que irá liquidar com o ativismo?

Fiquei muito triste com a declaração do presidente recém-eleito, até porque ele foi eleito com muito ativismo. Fico me perguntando se ele vai acabar com os ativistas que tanto trabalharam para o elegerem ou vai acabar apenas um determinado tipo de ativismo. Ativismo é ter ações em direções a coisas que você acredita. Ele foi beneficiado por muito ativismo. Fico querendo saber se só quer acabar com o ativismo que lhe faz oposição e aí começa a ficar complicado. O que me leva ao meu segundo estado dessa frase: a dúvida e a perplexidade.

A dúvida para entender o que ele quer dizer exatamente com isso e perplexa porque espero que ele mude de ideia. Se só for para acabar com o ativismo que o incomoda, vamos ter um problema complicado. Isso significa aniquilar uma das garantias constitucionais mais fundamentais para os cidadãos brasileiros, que é a liberdade de opinião, de pensamento e de expressão. Essa declaração tem uma potente e latente inconstitucionalidade preliminar.

Talvez ele deveria mudar o tom do discurso. A eleição acabou e ele foi eleito para governar um país formado por negros, mulheres, LGBTs, deficientes físicos; por pessoas que não têm condições mínimas de sobreviver, e para quem ele também terá que governar.  Então ao invés de liquidar qualquer coisa, aqui vai uma palavra de conselho: se preocupe mais em governar para a população que é super diversa, que padece de muitos problemas sociais, do que gastar tempo querendo liquidar alguma coisa. Cabe mais ao governante construir, transformar e administrar do que sair liquidando qualquer ativismo. Ele deveria rever esse comentário e posição.

“Parafraseando Sueli Carneiro, que disse que “entre a direita e a esquerda, sou negra”, eu digo entre a esquerda e a direita, sou mulher. Tem gabinetes ministeriais com nenhuma mulher e outros com algumas poucas, seja nos governos estaduais ou nas prefeituras. Essa situação é muito grave; é o maior déficit democrático na nação brasileira, porque 51% da população feminina não está representada nos três poderes.”

Geledés Como estudante da faculdade de direito, já interessada na temática dos direitos humanos, você conheceu o Geledés. De que forma vê a trajetória dessa organização em suas três décadas?

Estava na faculdade de Direito, quando o Geledés nascia. Isso foi há 30 anos. Sempre tive interesse por essas questões estruturais, a despeito de ter decidido me especializar no direito tributário e empresarial, nunca deixei de amar profundamente o direito constitucional. Não é à toa que o direito tributário está estruturado dentro da Constituição. Antes de sermos tributaristas, temos que ser constitucionalistas. O racismo estrutural sempre me interessou.

Quando fiz meu curso na USP, (supostamente) melhor faculdade do país, só tinha um colega negro. Na época, soube da existência do Geledés e esse tema da desigualdade racial era ainda menos debatido. Depois de formada, participei de um debate na organização. Foi quando vi Sueli Carneiro pela primeira vez. Saí muito impactada. Desde então esse tema sempre esteve muito latente.

Sou branca. Tive o privilégio de nascer com a pele branca, mas já presenciei situações inacreditáveis ao lado de pessoas negras e sempre que vivo essas situações, conscientizo-me sobre o racismo. Existe um problema de transformar essa realidade. Já fui uma pessoa mais racista que sou hoje. Humildemente, esforço-me para não ser racista e para não me aprisionar nessa cultura segregacionista, equivocada e desumana.

Há 30 anos, o Geledés me deu um estalo. Ao longo do tempo sempre procurei estar informada sobre as ações do Geledes. Antes, saber sobre as atividades da instituição não era tão fácil quanto hoje, com as redes sociais. Sempre que participava das ações, invariavelmente saía impactante. Era afetada positivamente com toda a riqueza de conteúdo e reconhecia a coragem que o Geledes tinha em trazer essa pauta não só sobre racismo, mas combinado à questão do gênero.

“O Geledés é um daqueles bastiões de resistência, de consistência conceitual e valorativa e que impõe com muita coragem. Ao longo da história brasileira empunhou uma das bandeiras mais difíceis: o direito das mulheres negras.”

Sobre a mulher negra incidem dois grandes preconceitos: o de raça e o de gênero, quase tornando impossível a vida de uma mulher negra. Geledes é fundamental e histórica, corajosa, consistente. Sempre falo com muita emoção e me fez muito bem.

Tive muita dificuldade em lidar com esse sentimento dentro de mim: o Geledes é um despertar de consciência. A situação da mulher negra é ainda mais difícil, que merece políticas públicas específicas que exige um olhar permanente. A violência contra a mulher. Na pressão de criar políticas públicas para o empoderamento feminino.

O Geledés é um daqueles bastiões de resistência, de consistência conceitual e valorativa e que impõe com muita coragem. Ao longo da história brasileira empunhou uma das bandeiras mais difíceis: o direito das mulheres negras.

É uma das grandes referências em São Paulo e no Brasil. Temos que agradecer a existência do Geledés nesses trinta anos.

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