Há pouco mais de um ano, escrevi aqui no Questão de Gênero um texto comentando os resultados de uma pesquisa realizada pelo Think Olga, em que a grande maioria das entrevistadas afirmaram não gostar de “cantadas” e disseram sentir medo. A pesquisa foi uma polêmica, mas abriu espaço para que o assunto fosse mais discutido no Brasil, e agora o Think Olga retorna com uma nova proposta: um documentário sobre o tema.
Por Jarid Arraes no Questão de Gênero
A equipe responsável criou um projeto no Catarse, onde pedem a contribuição do público para que o documentário “Chega de Fiu Fiu” possa ser realizado, finalizado e distribuído. Em menos de 24 horas a primeira meta foi atingida, evidenciando a necessidade de se mostrar a realidade sobre as ditas “cantadas” e como são, na verdade, uma forma de violência contra as mulheres.
Por concordar totalmente com a abordagem do projeto e apoiar a iniciativa, fiz uma parceria com o Think Olga e escrevi um cordel exclusivo para o “Chega de Fiu Fiu”; o cordel está entre outras recompensas que os colaboradores ganham ao fazer doações – a depender da quantia doada -, entre DVDs do documentário, ingressos para o evento de lançamento e material relacionado.
Para falar um pouco mais sobre o documentário, convidei a jornalista e fundadora do OLGA, a Juliana de Faria, para responder algumas perguntas sobre o projeto e a questão das cantadas e assédio nas ruas. Se você ainda não sabe como se posicionar a respeito, confira abaixo a entrevista na íntegra e, quem sabe, forme sua opinião:
– Na sua perspectiva, o problema do assédio e das agressões nas ruas é um problema comum a todas as mulheres? Porque temos correntes distintas dentro do Feminismo, dos movimentos de mulheres e tudo mais.
Juliana de Faria – Claro, e é essencial que tenhamos correntes distintas dentro do feminismo. Mas acredito que a desigualdade de gênero não seja um fenômeno concentrado à um tipo de mulher (ou um tipo de homem). Essa desigualdade desagua em criações de hierarquias e discriminação.
Nas nossas pesquisas para o documentário, descobrimos que a entrada da mulher no espaço urbano, dado no começo do século 20, foi marcado pela demarcação de dois grupos: o das mulheres de família e o das mulheres que não são de família, ou seja, as “da vida”, as “prostitutas”. Então a mulher fora do lar estava conquistando o espaço público, porém precisava monitorar seus gestos e aparências para não ser entendida como uma “mulher da rua” – sendo a “mulher da rua” um objeto entendido como público pelos homens. Se a mulher estava na beira da estrada, em um bar repleto de homens ou algum outro ambiente entendido como “masculino” (ou seja, praticamente todos), estaria sinalizando, nesse imaginário, sua predisposição ao ato sexual ainda que o tivesse negado repetidas vezes. O motivo? É que o espaço público ainda não é entendido como um espaço das mulheres.
Para as mulheres negras, o assédio é uma questão ainda mais complicada, pois são sempre entendidas como seres hipersexualizados. Veja esse email que recebi esta semana: “Sofro muito com assédio e me identifiquei muito com o vídeo. Além de mulher sou negra e enfermeira, os homens acham que por sermos negras somos mais abertas e receptivas a todo tipo de coisa.”
– O que você diria para as mulheres que falam contra iniciativas como a do Think Olga? Para as mulheres que dizem curtir essas “cantadas”?
Juliana de Faria – Gostaria de reforçar a ideia do consentimento.
As cantadas ou os assédios físicos não são uma forma de conhecer pessoas para um relacionamento íntimo. Uma paquera acontece com consentimento de ambas as partes: é uma tentativa legítima de criar uma conexão com alguém que você conhece e estima. Por outro lado, o assédio nunca leva a uma intimidade maior. O sujeito que grita para uma mulher na rua de dentro do seu carro jamais quer ouvir a opinião da outra parte. Ele quer apenas se impor sobre ela. Quem confunde assédio sexual com paquera quer, na verdade, causar confusão justamente para poder continuar a fazer o que quiser sem dor na consciência.
E se, mesmo depois disso, houver uma continuidade da defesa do assédio, acho que valeria pensarmos o motivo que faz com que ele seja necessário na vida de uma mulher. O conceito de beleza na sociedade patriarcal é uma resposta externa. É crucial, dentro deste conceito de beleza, que um homem qualquer aprove a mulher para que ela se entenda como bonita. Quando um cara assedia uma mulher na rua, ele fala que ela está sexualmente possível. E isso é extremamente recompensador para uma mulher que tem o sexo como validação do seu próprio ser. E TUDO BEM que essa mulher opte por ser assim. O problemático é existir uma sociedade que entenda todas as mulheres dessa forma e que crie homens que assedie (e amedronte, humilhe, maltrate) desconhecidas sem seu consentimento como se fosse uma roleta russa.
– Por que NÃO é exagero voltar o foco para esse tema?
Juliana de Faria – O assédio sexual tem causado impactos sérios e negativos na saúde física e emocional das mulheres. Entre os efeitos negativos relatados pelas vítimas, os mais citados são: ansiedade, depressão, estresse e distúrbios do sono. Além disso, muitas delas podam sua própria liberdade e seu direito de escolha ― deixando de usar uma roupa ou de cruzar uma praça, por exemplo ― por medo de sofrer tais abordagens. Então dizer não ao assédio é não aceitar mais que mulheres sejam vistas como objetos sexuais passivos ou como vítimas frágeis do poder dos homens. Dizer não ao assédio é afirmar que as mulheres podem e devem ter controle sobre a própria sexualidade. É mostrar que podemos igualar a voz e o poder da mulher na sociedade, é não submeter as mulheres aos papéis sociais tradicionais.
Para contribuir com o projeto, visite a página da campanha no Catarse e faça sua doação:www.catarse.me/pt/videochegadefiufiu
– Como estão sendo as reações das pessoas agora que sabem que vai sair um documentário? Vocês já andaram acompanhando os comentários e compartilhamentos?
Juliana de Faria – Jarid, estamos muito, muito emocionadas com a reação das pessoas.
Em menos de 24 horas (mais especificamente 19 horas), atingimos nossa primeira meta de 20 mil reais, que garante a entrega das recompensas, assim como o desenvolvimento do projeto, diversificação regional com envio do óculos para outros Estados brasileiros e a pré-produção.
Também fomos o 4º projeto que mais arrecadou nas primeiras 24 horas de existência em toda a história do Catarse (e o 1º no ranking da categoria Cinema & Vídeo). E trata-se de um projeto feminista (algo que sempre vem carregado com muito preconceito), que fala sobre violência contra a mulher e que oferece pouquíssimas recompensas materiais. Ou seja, as pessoas estão nos apoiando porque realmente acreditam na causa, porque querem mudar a forma como a violência contra a mulher é vista e tolerada.
Então é impossível não ficar sensibilizada ao perceber que tanta gente quer nos ajudar com essa luta!
– Vocês esperam resistência ou hostilidade com o lançamento do documentário? É algo para o qual vocês já se preparam? Como você lida com essa hostilidade e incompreensão diante do tema?
Juliana de Faria – Acho que, como já acontece agora, haverá ambos. Mas pessoalmente sinto que a hostilidade vem diminuindo. Ou ao menos as pessoas que não concordam com a campanha e o debate acerca do assédio estão reagindo de forma menos violenta.
O ciclo da violência contra mulher ainda existe. Ele funciona assim: você denuncia violência e, por denunciar, sofre ainda mais violência. Quando lançamos a pesquisa, um ano atrás, fui vítima de muita violência online. Questionavam minha aparência, fui xingada de todas as formas, ameaçada até de estupro. Aconteceu o mesmo com a Nana Queiroz, do Não Mereço Ser Estuprada, por exemplo, que se levantou contra a justificativas para o estupro e recebeu milhares de ameaças de abuso sexual.
No entanto, sinto que hoje as coisas estão menos extremas. Recebo ainda hate mail sim. Mas não é tão intenso quanto antes. Talvez o debate sobre assédio sexual tenha se solidificado na sociedade, com grandes instituições e empresas se posicionando também contra esse comportamento.
Acho que a violência online mina a dignidade das mulheres, deslegitima suas vozes como cidadãs e as reduzem a corpos sexualizados e objetificados. Isso as afasta de discussões online e suprime suas opiniões e contribuições para a sociedade. Quantas vezes, por medo, já não tive vontade de desistir? Mas hoje meu foco é dar continuidade ao meu trabalho, independentemente dos xingamentos e ameaças. Não leio essas mensagens brutas, não faço posts-respostas. Uso minha energia para continuar mantendo o projeto de pé. E estamos cada vez mais fortes!