Cidade e desigualdades: uma perspectiva de raça e gênero

Apesar das várias formas que a arquitetura e o urbanismo manifestam-se no dia-a-dia das pessoas, a profissão ainda é vista pela sociedade como atividade técnica. O debate sobre arquitetura, portanto, é visto como um tópico sobre o qual apenas os profissionais têm conhecimento, voz e interesse para opinar. Isso acontece, dentre várias razões, porque teóricos da área – que discursam de uma maneira acessível, sem o vocabulário técnico profissional – ainda têm pouca visibilidade. Neste esforço para humanizar a profissão e trazê-la para perto das pessoas, do cotidiano e das preocupações sociais, alguns nomes se destacam.

Do Caurs

Joice Berth é uma dessas pessoas. Arquiteta e urbanista de formação e pós-graduada em Direito Urbanístico pela PUC-MG, ela atuou na área de Regularização Fundiária e trabalha hoje como colunista do site Justificando, da revista Carta Capital, onde escreve sobre questões raciais, feminismo negro e direito à cidade.

Para Joice, questões de desigualdade social, racismo e machismo não podem ficar de fora do debate de nenhuma área profissional. “São problemas que se estruturaram na formação social, então todas as atividades profissionais carregam esse estigma. Na arquitetura não poderia ser diferente”. Para ela, os serviços de arquitetura são acessados por pessoas com mais informação e condições financeiras, e isso está ligado com a divisão de classes – e, a partir daí, com a divisão racial. “As pessoas de baixa renda não se veem representadas na arquitetura. O desenho das cidades é pensado considerando que existe uma desigualdade, mas ele não considera as origens dessa desigualdade e nem busca solucionar ela”, critica Joice.

A arquiteta e urbanista se refere a uma lógica de concentração da infraestrutura de serviços, cultura e lazer no “miolo” das cidades, próximo das áreas centrais. As habitações de melhor estrutura também ficam nos centros e a população de baixa renda é alocada nas periferias, restringindo o contato com o restante da população. O papel do arquiteto e urbanista, neste sentido, é de reconhecer essa problemática e atuar profissionalmente buscando mudanças. “Pensando na raiz das desigualdades, se consegue ter uma atuação profissional mais ampla no sentido de propor estratégias de urbanização e planejamento urbano que vão melhorar isso”, argumenta.

Sobre os avanços já conquistados em termos de raça e gênero nas cidades, Joice destaca alguns pontos: planejamentos de regularização fundiária, concentração dos empreendimentos nas mãos das mulheres e designação dos títulos de posse a mulheres. Mas ainda há um longo caminho pela frente. “Na questão social, já que essas casas ficam situadas nas periferias, e na questão racial mais ainda. Uma das soluções seria começar a abarcar a diversidade entre os profissionais que atuam no planejamento das cidades para que sejam pessoas mais periféricas que tragam essa visão a partir das suas próprias vivências. Hoje, mulheres negras nem sequer conseguem adentrar esses espaços profissionais”, lamenta a arquiteta.

Urbanismo, desigualdade social e segurança pública

Em tempos de crise na segurança pública e aumento da criminalidade, inclusive em regiões mais nobres da cidade, é comum que a população peça por mais policiamento. Mas a questão da segurança é, para Joice, um problema que deve ser enxergado com uma complexidade maior do que a lógica do policiamento e da punição, especialmente porque atinge em proporções muito maiores a população negra e de baixa renda. “O fato de as periferias estarem distantes é um resultante dessa lógica racista, punitivista e segregacionista. A problemática do sistema penitenciário não começa necessariamente na questão urbanística, mas também é afetada por isso”, comenta. O problema da concentração das pessoas de baixa renda nas periferias, portanto, tem um alcance ainda maior, já que agrava a situação da segurança pública ao afastar geograficamente e culturalmente diferentes camadas da sociedade. “Os urbanistas contribuem com a segregação se não pensam em formas de solucionar essa hierarquização dos espaços, de criminalização das periferias. É pensando nesse sentido que o arquiteto e urbanista pode começar a pensar soluções na sua atuação social”, afirma Joice.

Para mudar esta realidade, a especialista em Direito Urbanístico destaca a importância de implantar políticas de planejamento urbano também nas periferias. A organização de líderes comunitários, o investimento em centros de cultura e lazer também nas regiões periféricas, e a integração dessa população – em termos geográficos, mas também de acesso à cultura e à informação – com as áreas centrais da cidade, são soluções propostas por Joice. “Se você tem uma favela totalmente afastada da sociedade, aquilo é um mundo à parte, então é claro que vai ser um foco de violência, de criminalidade, de fuga. Fazer um tecido urbano mais homogêneo, integrado, que tenha projetos nas bordas das cidades também, ajuda toda a sociedade a se olhar mais nos olhos e ter coisas em comum. Se culpa a periferia como se ela produzisse sozinha a criminalidade”, aponta a arquiteta e urbanista.

Reconhecimento social do arquiteto

Para a maior parte das pessoas, o arquiteto é lembrado como um profissional que projeta casas, prédios e interiores, e o aspecto mais humano da profissão não tem tanto destaque. “As pessoas infelizmente se distanciaram muito da atuação do arquiteto por causa dessa ideia de arquitetura-sonho. Elas acessam o trabalho do arquiteto o tempo inteiro e não se dão conta. A maior dificuldade é fazer ver que não servimos só para fazer coisas bonitas e decorativas. Que a rua que a gente anda, o guarda-corpo da escada do prédio, influenciam na vida delas e tem mão de arquiteto”, aponta Joice. Ela relata que, quando trabalhou com regularização fundiária, causava surpresa nas pessoas ao dizer que era arquiteta. “Elas não sabiam que arquitetos faziam isso. Até mesmo pessoas mais instruídas, jornalistas, engenheiros, não têm às vezes noção do alcance da profissão do arquiteto e urbanista”, observa.

Para Joice, é essencial que a categoria faça um movimento no sentido da valorização da função intelectual do arquiteto, de pensar sobre a sociedade que está relacionada com as cidades. “Muitos arquitetos conhecidos não são simplesmente estrelas da arquitetura, eles vêm de um processo intelectual que não está sendo observado e valorizado”, afirma a profissional. Ela atenta, ainda, para a importância de que o arquiteto seja tão dedicado à arquitetura quanto ao urbanismo, para desenvolver uma visão mais ampla da cidade. “Penso nesse erro desde a faculdade, de as pessoas deixarem o urbanismo de lado. Não podemos separar Arquitetura e Urbanismo, as duas coisas andam juntas. E também não podemos separar essa discussão da sociedade”, conclui.

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