Cidade na Argentina pode ser a primeira do país a eleger um prefeito negro. Por Murilo Matias

 

David Leiva. Foto: Reprodução no DCM

POR MURILO MATIAS no DCM

Na esteira do resultado da eleição nacional, a cidade de Salta pode marcar a história da Argentina caso o projeto popular apresentado por David Leiva reverta a tendência das pesquisas e o cantor e vereador torne-se o primeiro afroargentino eleito para o cargo de prefeito.

O candidato da Frente de Todos, que venceu as internas contra outros três postulantes, aposta numa campanha centrada nas periferias para vencer a tradicional direita local.

“Vim dos setores populares, represento muitas vozes e desde esse lugar entendo saber quais são as necessidades e o plano de governo para se ter uma melhor cidade para a coletividades dos bairros”, diz.

“A discriminação está marcada culturalmente, pessoas humildes são estigmatizadas e consideradas incapazes de ocupar espaços de poder devido ao racial, ao socioeconômico, às diversidades. Temos de transformar essa realidade do racismo que nos machuca, gera ressentimento e nos empobrece como sociedades”.

As desigualdades são sentidas especialmente nos bairros periféricos, onde a ausência do estado são evidentes nas carências de saneamento e pavimentação, problema que afeta as famílias, as quais muitas vezes perdem seus escassos bens em função das recorrentes inundações – a cidade está rodeada por rios.

Outro desafio urgente é o combate à desnutrição e à fome. A atual gestão a partir do Ministério de Assuntos Indígenas e Desenvolvimento Social de la Provincia na esfera estadual desenvolve desde setembro o Plano Alimentar Salteno que consiste na  abertura de 250 escolas públicas e centros de infância aos fins de semana, afora o financiamento para a compra de itens básicos a mais de cinco mil idosos.

Por outro lado, na praça 9 de Julho, região de afluência de turistas, uma refeição simples chega a custar 50 reais, ao passo que nas proximidades da rodoviária é possível se alimentar por 5 reais.

A disparidade denota a complexa formação urbana da cidade de mais de 400 mil habitantes, incluindo numerosas comunidades indígenas originárias e outras que migraram da Bolívia.

A disputa entre classes está demarcada também entre os dois principais concorrentes, Leiva e Bettina Romero, filha e neta de governadores da província.

“Não sei se será uma tendência definitiva entre o eleitorado, mas pode-se dizer que Bettina atrai o público das classes médias às altas enquanto Leiva provém dos bairros humildes e conta com esse voto para ampliar suas chances”, avalia a jornalista Cecilia Agüero, do diário digital InformateSalta.

Nas primárias o grupo conservador somou 145 mil votos somando os candidatos derrotados ao passo que a Frente de Todos alcançou 82 mil adesões, números que sugerem o favoritismo de Bettina, que pode tornar-se a primeira prefeita da cidade.

Apesar da crise nacional, em relação à disputa presidencial Salta foi uma das raras cidades em que Macri obteve vantagem sobre  Alberto Fernandez e Crisitina Kircher, mas a vitória do campo peronista e o fato de Bettina ter passado boa parte de sua vida fora do município podem ser fatores que emparelhem a eleição deste domingo.

Cor Tropical

“Dói saber que a coisa que eu queria quando criança era pele de ilusão e que o anjo anda com os pés do cansaço. Isso nos leva à vida para lutar”.

A música Zamba del Angel cantada por Leiva em seu ritmo tropical conta um pouco da trajetória pessoal do candidato, mas também da disposição coletiva de um povo para os enfrentamentos sociais, muitos deles relacionados ao racismo.

Os praticamente inexistentes registros de políticos negros denota além da exclusão, as consequências da colonização e da construção da identidade nacional baseada quase que unicamente em figuras brancas e masculinas.

“É difícil acessar informações seguras porque a historiografia liberal não enfatizou esse assunto. Há alguns anos começou a se espalhar que o sargento Juan Bautista Cabral, um herói argentino, era afro-descendente. Durante o século XX tampouco há dados confiáveis”, comenta o cientista político Nicolás Casadidio.

Outras lideranças citadas são de Tomas Platero e o Doutor Ramon Castillo.

A fim de revisar o passado e estabelecer uma nova relação em termos de inclusão foi criado o  Instituto Nacional de Assuntos Afro-argentinos, Afrodescendentes e Africanos (Inafro), mas a estrutura racial discriminatória ante afro e indígenas segue vigente.

No ultimo censo realizado em 2010, 150 mil pessoas declararam-se  como afro, dentre mais de 30 milhões de habitantes.

“Sempre perguntam aos afroargentinos se eles são do Brasil, da Colômbia, menos da Argentina, o que os irrita muito. Nos últimos anos há muitos casos de racismo contra a comunidade senegalesa, vários trabalham como vendedores nas ruas e são mal tratados pela polícia em diversas situações”, observa Sergina Boa Morte, brasileira que vive em Buenos Aires desde 1971 e atua em diferentes projetos em relação ao tema.

O assassinato em 2016 de Massar Ba, militante senegalês, ainda em investigação, revela a violência a que estão expostos os negros na capital e em todo o território.

Em Salta a chance do marco de referência do que pode ser a eleição do primeiro prefeito negro do país depende exatamente da união das classes populares e minorias tradicionalmente esquecidas pelas administrações públicas.

Independentemente do resultado de domingo, a campanha aguerrida de Leiva e o alcance de sua voz projetam a esquerda Argentina em direção à pluralidade de suas lideranças, pelo menos ao norte da nação.

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