Cidade, pega a visão

Favelados têm voz e precisam ser ouvidos. É sobre isso a luta histórica por direitos

Por Flávia Oliveira, do O Globo

Fávia Oliveira (Foto: Marta Azevedo)

Dias antes da virada do ano, a pesquisa DataFavela/Instituto Locomotiva deu o papo sobre sonhos, projetos e reivindicações dos habitantes de 63 comunidades brasileiras para o ano novo. A consulta, mês passado, ouviu 2.006 moradores de favelas dos 26 estados e do Distrito Federal. Foi o maior levantamento já feito sobre percepções subjetivas nas quebradas; nele está nítido que protagonismo e representatividade são agendas que vieram para ficar. A favela sabe quem é, como a veem, o que deseja, quem a sabota. Os sinais estão por toda parte.

Chama atenção o trecho no qual pessoas de dentro e de fora são convidadas a listar palavras que associam aos territórios. Nos dois grupos, pobreza foi o substantivo mais citado, prova de que a insuficiência de renda é real. Mas a coincidência termina aí. Quando pensam em favela, habitantes do asfalto mencionam violência, tráfico, assalto; favelados imaginam família, alegria, amizade, felicidade. Apresenta-se, sem retoque, o hiato que separa carência e potência, como ensina o geógrafo Jailson Souza e Silva. De um lado, o ambiente reduzido a falta de dinheiro e violência de sobra; de outro, as experiências inestimáveis de convívio social, laços afetivos, redes de solidariedade e relações comunitárias.

Oito em dez moradores de favelas concordam que há preconceito contra eles; três em quatro já foram discriminados. E seguem. Na consulta sobre 2020, 81% afirmam que o ano novo será melhor que o velho; na missão, contam com o próprio esforço (64% de citações), com Deus (13%) e com a família (10%). Presidente da República, governador e prefeito somam juntos 8%. Governos estão por fora. Para quem duvida, a prova dos nove: segurança (30%), infraestrutura (17%) e acesso à saúde (12%) são os desejos coletivos mais citados, todos dependentes dos investimentos públicos e sistematicamente negligenciados.

Ainda ontem, o midiativista Raull Santiago, do Coletivo Papo Reto (Complexo do Alemão), comentava numa rede social sobre o problema crônico da falta de água: “Tem pessoas há muitos dias sem água. Lembrei que no sertão de Pernambuco crianças pediram água ao Papai Noel. Água deveria ser direito, não privilégio. E a culpa não é da favela”. Raull é dos mais potentes jovens líderes que, em rede, atuam na troca de experiências e conhecimento para reivindicar transformações nos territórios onde vivem. É exemplo de juventude conectada que vem resgatando, ainda que informalmente, princípios do aquilombamento — as práticas de diálogo, criação de estratégias e atuação inspiradas nos territórios ancestrais de resistência dos africanos escravizados no Brasil.

A favela quer prosperar. Na pesquisa, um terço dos entrevistados sonha abrir o próprio negócio, prova da vocação empreendedora que brota também da escassez de vagas no mercado formal e da precariedade da ocupação sem carteira assinada. O principal sonho pessoal é a casa própria (21%); o segundo, ter saúde (20%); 5% querem os filhos na faculdade. Quatro em dez se consideram completamente felizes, numa confirmação de que o conceito extrapola saldo bancário e patrimônio.

Favelados têm voz e precisam ser ouvidos. É sobre isso a luta histórica por direitos, que hoje não abre mão de protagonismo e de representatividade. A GatoMídia, rede de aprendizado em tecnologia criada no Complexo do Alemão, levou à Assembleia Geral da ONU “Descolonize o olhar”, filme em 360 graus com um passeio virtual pela Maré guiado pelo fotógrafo Bira Carvalho, morador da comunidade. Da Maré, do Borel e do São Carlos saíram, respectivamente, Renata Souza, Mônica Francisco e Dani Monteiro, eleitas deputadas estaduais pelo PSOL, em 2018, na esteira da reação política ao assassinato da vereadora Marielle Franco, até hoje, não totalmente esclarecido.

No carnaval 2020, cinco escolas do Grupo Especial do Rio fazem referência a morros e comunidades nas letras dos sambas. Num enredo sobre arquitetura, a Unidos da Tijuca reverencia o Borel, berço da agremiação, e cobra em verso que “Dignidade não é luxo nem favor”. A Mocidade Independente de Padre Miguel, que vai homenagear Elza Soares, evoca a musicalidade e a luta dos territórios: “Sou eu que te falo em nome daquela/ Da batida mais quente/ O som da favela/ A resistência em nosso chão”. A Paraíso do Tuiuti põe o morro em cortejo na história que mistura Sebastião, rei de Portugal, e o homônimo santo católico.

A União da Ilha reapresenta a imagem do morro que toma o asfalto: “Esquece a tristeza agora/ É hoje o dia da comunidade/ Um novo amanhã, num canto de liberdade”. Na Mangueira, campeã de 2019, o carnavalesco Leandro Vieira defende o título contando de forma diferente uma velha história, a de Jesus Cristo. O samba de Manu da Cuíca e Luiz Carlos Máximo canta o Salvador como menino negro e favelado. É manifesto: “Favela, pega a visão/ Não tem futuro sem partilha/ Nem Messias de arma na mão/ Favela, pega a visão/ Eu faço fé na minha gente/ Que é semente do seu chão”. O recado está dado.

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