Nos deram uma outra memória, de porcelana, porém

300 anos sendo comprados e vendidos, trazidos acorrentados para o Brasil, em Navios, selecionados e mortos na travessia, jogados ao mar. Mulheres estupradas, crianças vendidas, menos que animais. Os que sobreviveram para contar essa Histόria foram silenciados, desacreditados. Disseram-nos “esqueçam isso, bola pra frente. O futuro vos espera” e ainda “Não se façam de vítimas, sacode a poeira, foi só um machucadinho”.

por Fabiane Cristina Albuquerque enviado para o Portal Geledés

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Aí juntamos o que restava de uma existência que nem era de gente, sem nenhum parâmetro do que era ser um humano, pois os primeiros que sabiam, haviam morrido há tempos.

Não houve luto para chorar os filhos vendidos, os estupros, as chibatadas, os olhos furados, os dentes e mãos arrancadas, a morte física e existencial.

Apresentaram-nos o mercado de trabalho e disseram que éramos livres. Tampouco sabíamos o que era ser livre.

Eu me lembro de uma aula de história que dei em uma escola de classe média na cidade de Jundiaí para o oitavo ano em 2017. Eu passei para a turma o filme “12 anos de escravidão” e ao fazermos um debate em sala de aula, uma menina, das mais interessadas e gentis me disse: “Eu achei que os negros e os brancos eram amigos, professora”.

Aquela frase me tocou. Sό não chorei porque já  vivíamos um clima pesado, onde tudo o que se falava, de injustiça social a direitos humanos, era considerado coisa de comunista. Chorar então, naquela altura, poderia ser até considerado um convite para a revolução.

Engoli seco e fui explicar o que foi a escravidão. Mas como explicar algo cuja memória coletiva foi construída e apreendida como algo romântico, uma vivência social amigável, uma doçura de relação? Então  comecei a pensar de onde ela tinha tirado aquilo, quais os referenciais que ela tivera na  vida para chegar a uma conclusão daquelas.

Lembrei que na minha infância, eu também assistia algumas novelas da rede Globo que retratavam a escravidão e  resgatei imagens e narrativas onde homens brancos, senhores de escravos se apaixonavam pelas negras escravizadas.

“É mentira”, eu quis dizer àquela menina, mas não podia. Não podia porque um processo de conhecimento não se constrói assim e  aprendi com Paulo Freire a ajudar a pensar e não a pensar pelos educandos. E depois, eu sabia que a Instituição nunca me permitira dizer algo do tipo, pois na primeira tentativa de falar sobre Zumbi dos Palmares, fui interrompida por um aluno que disse no auge da sua “sabedoria” de 14 anos que Zumbi também tinha escravos e por isso era pior que os brancos. Eu peguei uma época antes de deixar o Brasil, onde os alunos é quem diziam o que era verdade e mentira, o que eu podia falar ou não. Acho que as coisa sό pioraram desde então.

Mas voltando à escravidão. O que diferencia nosso processo de abolição daquele dos Estados Unidos é a mentira. Enquanto no Brasil a população  negra foi “proclamada livre”, arquivos sobre escravidão foram queimados, os brancos e as instituições na época fingiram que a historia nem era com eles, afundaram-se num silencio profundo e na negação da histόria e nos fizeram cúmplices deles, arrastando-nos para a negação do racismo. Substituíram os fatos e a nossa memória de dor, as cicatrizes das feridas  pelo mito da Democracia Racial, onde brancos e negros se misturavam e viviam harmoniosamente, pois o povo brasileiro tinha a marca da “cordialidade”.

Proclamaram-nos livres ao mesmo tempo em que nos negaram a terra, através da lei, nos negaram escolas, mantendo-nos na pobreza e na ignorância, nos negaram emprego, com a política de Estado que incentivara a ida de migrantes italianos, alemães, poloneses, dentre outros, para o Brasil. Nos negaram o voto, pois quem podia votar deveria ser alfabetizado e possuir bens.

Até 1950, 80% da população negra no paίs não votava por ser analfabeta.  Nos negaram até a religião e as práticas culturais dos nossos ancestrais. Disseram-nos para sorrir, pois negros e negras “felizes” tinham mais chances. Sorrir até das piadas racistas que saiam em forma de “brincadeira” porque assim não causava conflito. E foi “brincando” que nos insultavam, zombavam dos nossos corpos, cabelos e da nossa existência.

Não houve sequer um “Tribunal de Reconciliação” como houve na África do Sul, depois do Apartheid, pelo menos para contar as histόrias de atrocidades, os filhos assassinados na frente das mães, mães estupradas nas senzalas na frente dos filhos, os corpos estraçalhados quando perdiam o valor trabalho ou se rebelavam. Ninguém quis ouvir. Osilêncio nos envolveu, a mentira também.

Para os negros estadunidenses não houve mentira, houve separação mesmo, “iguais mais separados”, houve segregação, houve leis racistas. E por causa disso, houve também movimentos fortes, desde a luta armada até aquela pacifica, houve igrejas construídas por negros que afirmavam a própria identidade, que alfabetizou milhares e até financiou Universidades para a população. Não digo que foi melhor, mas não sabemos como teria  sido viver sem a mentira. Sό sei que a mentira nos impede de agir e que a verdade deveria ser um direito inalienável e a memória também.

Em 2016 participei de um encontro com um dos sobreviventes do holocausto em Auschwitz, Ennio Trivellin, na biblioteca municipal de Verona, na Itália, onde ele disse que levou 50 anos para quebrar o silêncio e  falar do que aconteceu naquele inferno nazista na Polônia onde entrou aos 16 anos. 50 anos.

Me perguntei como alguém conseguiu silenciar por meia década. Para onde iam as memórias e os traumas? Para onde escorria o sofrimento? Ele então explicou que no início até que tentou falar paraos mais próximos, mas ninguém acreditou, sugerindo que ele estava exagerando. Somente meio século depois, os primeiros começaram a falar em conjunto e foi quando deram-lhes ouvidos. Afinal, não era possível que todos estivessem inventando as mesmas histórias com tantos detalhes.

E eu até penso que os primeiros negros libertos no Brasil tentaram falar e foram desencorajados, calados, outros até morreram ou adoeceram vendo-lhes substituírem a memória. Imaginem o peso de dizer a verdade sozinho ou em pequenos grupos enquanto toda uma sociedade grita “mentiroso, mentiroso”. A branquitude não queria ouvir, pois era como colocar-lhes um espelho diante de si e dizer “olha, é você!”. Foi mais fácil encorajar o silêncio, despolitizar a escravidão e as relações, transformá-la em romance ou novela que tudo se resolveria com o tempo. Sό que não.

Uma das piores violências que se comete diariamente contra pobres e negros no Brasil é cravar mentiras nos seus corpos, como dizia Fanon com relação às mentiras cravadas nos corpos dos colonizados. Negaram-nos o direito à verdade e aos fatos e construíram uma outra história mais doce, para isentá-los da culpa.

Todavia, a memória que nos deram está sendo quebrada, pois é uma memória impostora, uma memória de porcelana, não poderia se sustentar por todo o sempre, apesar de ter durado muito. Diante disso, da quebra e das fissuras dessa memória falsa, causada pelos movimentos negros e pela honestidade  de alguns e algumas intelectuais, podemos afirmar que sem medo que:

  • Não tivemos uma “escravidão ligeira”. Não existe isso. Foi escravidão. Branco não foi amigo de negro, branco era proprietário, cara ex aluna.
  • Não houve casos de amor entre proprietários e mulheres escravizadas, houve estupros.
  • Negros queriam trabalhar, mas foram preteridos pelos brancos porque esses não sabiam se relacionar com os negros de outra forma que não fosse como mercadoria. O imigrante branco teve prioridade em relação aos negros libertos.
  • Negros não ficaram na pobreza porque quiseram. Eles não sabiam ler ou escrever, tampouco puderam votar ou se candidatar, foram mantidos nessa condição por séculos. Não podendo votar e nem eleger os seus, não havia ninguém, absolutamente ninguém que os representasse suas demandas nas instituições brasileiras. Ficaram à margem da República.
  • “Negros foram parar nas favelas porque não trabalhavam”. Mentira! Primeiro negaram a terra, depois o trabalho e os estudos, depois o direito à cidade e aos serviços básicos. E ainda hoje continuam sendo empurrados para áreas onde ninguém quer, pois até mesmo os morros começaram a ser cobiçados pelo mercado imobiliário.
  • É mentira que cometem mais crimes, negros sempre foram punidos com mais severidade. Punidos até quando dançavam samba e carnaval e agora se dançam Funk. Punidos por carregar um guarda-chuva, por frequentar shoppings Centers, por morar em determinadas áreas, por usar boné com a aba alta, por andar de carro com a família no domingo…
  • Depois da abolição da escravidão, continuaram a manter mulheres pretas dentro das casas sem salário, sem direitos, dizendo “São quase da família”. Nesse “quase” cabe um abismo. E ainda hoje, meninas são trazidas dos interiores para trabalhar em casas de famílias com a mesma mentira, vestindo novas roupagens: “essa é a menina que eu crio”.
  • “Negros se fazem de vítimas”. Mentira! Brancos não suportam um segundo e conversa com um negro ou uma negra cuja memória histórica não foi substituída pela deles.
  • “Não existe dívida histórica porque não fui eu que escravizei vocês”. Essa frase é muito repetida. Então, cada sangue derramado na escravidão, cada pedra colocada nas estradas do Brasil, cada café colhido, cada cana cortada com sangue e morte foi bebida e usufruída pelos seus. Enquanto os seus eram livres e humanos os meus rastejavam para manterem-se vivos. Se com a sua branquitude, você não recebe bala “perdida de polícia”, fique quietinho (a), pois ainda estamos lutando para ser gente no Brasil.

Quem nos restituirá a verdade histórica?

Precisamos, como nos aponta Fanon, velar pela liquidação de todas as mentiras cravadas” em nossos corpos. Ninguém pode viver assim! Tampouco quem nos obriga a viver mentindo. É alarmante o número de policiais que se suicidam cada ano. Não é possível negar a realidade, mentir sobre ela e ao mesmo tempo viver nela. Grande parte deles sabe que matam por classe e por raça.  Esses profissionais da segurança também se rompem, a não ser aqueles com um alto grau de psicopatia e cinismo. A memória de porcelana se quebrou e é assustador. Finalmente o silêncio foi quebrado, não por falta de pessoas que falassem, mas por falta de condições para ouvί-las e, de todos os lados, há falas, há gritos,  há até pessoas cansadas de gritar.  Rompemos o silêncio. Agora é devolver à historia e aos negros o que foram roubados deles: a memória. Em base a isso podemos reconstruir.

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