No início de agosto, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CiDH) publicou a Opinião Consultiva OC-31/25, na qual reconhece o cuidado como direito humano, estabelecendo um marco jurídico para a região e redefinindo as prioridades de políticas públicas e de proteção social para os países que integram a Organização dos Estados Americanos (OEA), inclusive para o Brasil.
A decisão foi uma resposta à consulta formulada pela Argentina e deu um passo histórico ao reconhecer o cuidado como um direito humano autônomo, protegido pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos. A CiDH definiu que esse direito possui três dimensões essenciais — ser cuidado, cuidar e o autocuidado — e que os estados têm a obrigação de respeitá-lo, protegê-lo e promovê-lo por meio de políticas públicas e marcos legais adequados.
A Corte enfatizou que a rede de apoio para os cuidados é indispensável para a dignidade humana e para o exercício de outros direitos fundamentais, como saúde, trabalho, educação e segurança social. O reconhecimento de sua autonomia normativa visa a superar a fragmentação com que o tema tem sido tratado, abordando de forma integral as necessidades de quem recebe e de quem presta cuidados.
A incorporação do cuidado como direito humano exige, desde o primeiro momento, que se reconheça a profunda marca racial que estrutura quem cuida e quem é cuidado no Brasil. Antes mesmo de discutirmos a arquitetura jurídica inaugurada pela OC-31/25, é preciso afirmar que a divisão social dos cuidados no país é atravessada por desigualdades raciais historicamente produzidas: mulheres negras não apenas compõem a maior parte da força de trabalho remunerada do cuidado, como também acumulam, de maneira exacerbada, as tarefas não remuneradas no âmbito doméstico. Sem esse reconhecimento, a discussão sobre o direito ao cuidado corre o risco de permanecer abstrata e descolada das hierarquias coloniais que organizam o cotidiano brasileiro.
Desigualdade de gênero e de raça
No Brasil, entretanto, essa desigualdade de gênero se entrelaça com a racial: enquanto as mulheres, de modo geral, realizam três vezes mais trabalho de cuidado do que os homens, as mulheres negras são aquelas que vivenciam a forma mais intensa, precarizada e invisibilizada dessa divisão social do trabalho.
No mesmo sentido da realidade brasileira, um dos aspectos centrais da decisão da Corte Interamericana na Opinião Consultiva em comento foi o enfrentamento da desigualdade de gênero na distribuição das responsabilidades pelos cuidados. A CiDH destacou que o trabalho de cuidado, especialmente o não remunerado, recai desproporcionalmente sobre as mulheres — em média, três vezes mais do que sobre os homens — e que essa sobrecarga perpetua desigualdades históricas, limitando a participação feminina no mercado de trabalho e na vida pública. Para reverter esse cenário, determinou que os Estados adotem medidas estruturais, como licenças parentais equitativas, serviços públicos de cuidado, flexibilização de jornadas e campanhas que promovam mudanças culturais e a corresponsabilidade entre homens e mulheres.
A OC-31 reforça que uma política sobre cuidados deve ser guiada por princípios de igualdade, solidariedade, corresponsabilidade social e familiar, além de promover a autonomia da pessoa cuidada, alinhando-se aos parâmetros do Sistema Interamericano.
Política Nacional de Cuidados
No Brasil, a OC 31 se conecta diretamente à Política Nacional de Cuidados (PNC), instituída pela Lei 15.069, promulgada em dezembro de 2024. Esta norma prevê que a PNC será implementada, de forma transversal e intersetorial, por meio do Plano Nacional de Cuidados, indicando como público prioritário dessa política: crianças e adolescentes, pessoas idosas e com deficiência que necessitem de assistência, apoio ou auxílio para executar as atividades básicas e instrumentais da vida diária, trabalhadoras e trabalhadores remunerados e não remunerados do cuidado.
A incorporação do entendimento da CIDH ao ordenamento jurídico brasileiro pode fortalecer a base legal da recentíssima Política Nacional de Cuidados, além de exigir a revisão de normas trabalhistas e previdenciárias para reconhecer, ampliar programas sociais e de infraestrutura voltados ao cuidado e proteger o trabalho de cuidadores não remunerados — inclusive com a possibilidade de contar o tempo do trabalho de cuidado para fins de aposentadoria ou de remição de pena de mães que amamentam no cárcere ou que estão em prisão domiciliar por terem filhos menores.
A OC 31 deve influenciar decisões judiciais, que poderão utilizar o seu teor como referência na interpretação de direitos sociais e econômicos e na promoção da igualdade de gênero. A lente do cuidado no julgamento de casos que abordem assuntos como maternidade e direitos sexuais reprodutivos de mulheres em situação de rua ou vítimas de violências, direito à moradia, racismo ambiental, meninas e direito à infância sem trabalho, transmissão de saberes tradicionais, valorização da memória coletiva, tributação, direito à renda e informalidade, liberdade religiosa e guarda de filhos, maternidade de mulheres migrantes, dentre outros, têm um poder transformador na sociedade, além de reforçarem a importância da aplicação dos Protocolos de Julgamento sob perspectiva de gênero e sob perspectiva racial, ambos instituídos pelo CNJ e de observância obrigatória.
Cuidados especiais às mulheres negras
As vulnerabilidades somadas das mulheres que cuidam — as suas interseccionalidades — requerem a implementação de políticas públicas que fortaleçam o direito dos cuidados, em especial para as mulheres negras e pobres, cujo destino é traçado desde muito novas.
O desafio está na mudança de paradigma que possibilite falarmos em sociedade de cuidados ao invés de continuarmos a tratar os cuidados sob a ótica interseccional, onde os marcadores de gênero e raça são estanques e teimam em retratar uma realidade que continua a reproduzir desigualdades.
Por isso, a lente racial e de gênero nos julgamentos não é um adendo opcional: é o eixo pelo qual o Judiciário deve reinterpretar casos que, historicamente, foram julgados a partir de uma suposta neutralidade que mascarava desigualdades. Uma hermenêutica do cuidado precisa reconhecer que mulheres negras estão mais expostas à violência obstétrica, às barreiras no acesso à saúde reprodutiva, à informalidade, às múltiplas jornadas e à pobreza de tempo — tudo isso agravado por estruturas racistas que atravessam o Estado brasileiro.
Reconhecer o cuidado como direito humano, no Brasil, é reconhecer que a reprodução social do país sempre foi sustentada pelas mãos, pelos corpos e pelo tempo das mulheres negras. Qualquer política pública ou qualquer julgamento que ignore esse dado incorre numa cegueira racial que neutraliza a potência transformadora da OC-31.
O dever estatal de tratar o cuidado como direito humano retira de vez da invisibilidade atividades que fazem parte do cotidiano das mulheres. “O que chamam de amor, nós chamamos de trabalho”, célebre frase de Silvia Federici, passa a ser um chamado político e jurídico para proteção das mulheres: é dever do Estado criar as condições para que cuidar seja uma escolha livre, compartilhada e valorizada, e não uma imposição silenciosa que perpetua desigualdades.
Inês Virgínia Soares é desembargadora federal no TRF da 3ª. Região (SP). Doutora em direito pela PUC-SP, com pós-doutorado no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP). Especialista em direito sanitário pela UnB (Universidade de Brasília). Autora do livro “Direito ao(do) Patrimônio Cultural Brasileiro” (Ed. Forum).
Melina Fachin é advogada, doutora em Direito e diretora da Faculdade de Direito da UFPR.