Clóvis Moura e Florestan Fernandes: O protesto escravo na derrocada do sistema escravista nas obras Rebeliões da senzala e Brancos e negros em São Paulo

Clóvis Moura e Florestan Fernandes

Por DIEGO RICARDO PACHECO no Kilombagem

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade Federal de São Paulo como requisito parcial para obtenção do grau em Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais. Orientador: Prof. Dr. Diego Ambrosini

INTRODUÇÃO

Pensar o Brasil é pensar o negro[1]brasileiro. Ou seja, é pensar um Brasil negro. Todos aqueles que se voltaram à história brasileira com a finalidade de contribuir para o debate de sua formação e desenvolvimento, tiveram que necessariamente atentar-se às contribuições dadas pelo povo negro em solo nacional[2]. Porém, observamos que nem sempre esse ―resgate histórico foi feito com o intuito de consagrar ao negro contribuição relevante na formação brasileira. Quando muito, sua contribuição resulta em esforços à cultura (música, dança, comida etc.), fazendo com que o problema da ―integração do negro ao regime de trabalho escravo no Brasil seja visto como um problema de aculturação[3]. Destarte, a dinâmica das condições do negro sendo posto em relação direta com o modo de produção escravista é substituída pela sua inadaptabilidade vindo da África e sendo inserido nos padrões organizacionais europeus, manifestando-se em ―choques culturais. Ou seja, um problema de não adaptação do negro africano à cultura do colonizador europeu. Isso é observável napredominância das interpretações que proliferaram na primeira metade do século XX que contemplavam o arcabouço apenas do sincretismo das religiões, da língua e até dos quilombos (vistos apenas como movimento de retorno à organização social africana). Esse pensamento se desdobrará e será o suporte de uma das mais eficazes ideologias das relações raciais no Brasil: a democracia racial.

A expressão ―democracia racial, embora tenha sido vulgarmente assimilada à figura do antropólogo pernambucano Gilberto Freyre (1900-1987) não é encontrada em sua obra. Na verdade, ela só vem aparecer tardiamente na literatura sobre as relações raciais no Brasil, mais especificamente na década de 1950[4]. Nesse autor, encontraremos uma referência similar, quando de um ciclo de palestras em que participa em Indiana, Estados Unidos.

―… o seu sistema excessivamente paternalista e mesmo autocrático de educar os índios desenvolveu-se às vezes em oposição às primeiras tendências esboçadas no Brasil no sentido de uma democracia étnica e social‖ (FREYRE apud GUIMARÃES, 2001, p, 148).

Mas a ideia de uma ―democracia étnical no Brasil, em que a cor não seria um empecilho ao acesso às oportunidades e riquezas produzidas, já povoava o imaginário dos países europeus e americanos a muito tempo antes dessas ideias ganharem espaço no debate acadêmico e político nacional. Podemos perceber isso em uma intervenção feita pelo abolicionista Frederic Douglas em uma palestra em 1858, como apresenta o professor Antônio Sérgio Alfredo Guimarães:

Mesmo um país católico como o Brasil — um país que nós, em nosso orgulho, estigmatizamos como semibárbaro — não trata as suas pessoas de cor, livres ou escravas, do modo injusto, bárbaro e escandaloso como nós tratamos. […] A América democrática e protestante faria bem em aprender a lição de justiça e liberdade vinda do Brasil católico e despótico. (GUIMARÃES, 2001, p, 149).

De fato, esse debate ganhará maior repercussão no Brasil com o surgimento e vulgarização da ideia de ―cultural, que contrapondo-se às concepções de ―raçal, nega o carácter irreversível da inferioridade moral e psicológica do negro, como essa última apregoava. Ainda distante de representar uma melhoria na situação do negro no Brasil, será uma maneira eficiente de incorporar essa parcela da população ao plano econômico e principalmente ideológico brasileiro.

Após o ano de 1945 e com o fim da ditadura varguista, abre-se o período democrático no Brasil. É o momento em que teremos o avanço do debate politico sobre os rumos da democracia no país, seja ela econômica, social, politica e também racial (essa última na ordem do dia das pautas dos movimentos negros da época). Não podemos perder de vista que a ideia de uma ―democracia racial‖ no país vai também de encontro a demonstrar o avesso dos conflitos raciais que se reproduziam nos Estados Unidos. Somente com o projeto da UNESCO sobre as relações raciais no Brasil que durou entre 1952/55 (e que buscava encontrar em solo nacional os elementos de uma convivência étnica não conflituosa) que o debate sobre a existência de uma democracia racial no país ganha maior visibilidade. O sociólogo Clóvis Moura (1925-2003) refere- se a esse debate da seguinte maneira:

Esses estudiosos, verdadeiros químicos antropológicos, sociológicos e historiadores analisavam os movimentos sociais dos escravos negros como se eles não estivessem engastados em um modo de produção, mas se limitassem à soma ou subtração de traços culturais africanos e ocidentais, para ver-se se esses movimentos antiaculturativos eram uma rejeição completa aos padrões culturais ocidentais ou podiam ser compreendidos através dos conceitos de sincretismo, aculturação ou assimilação (MOURA, 1988, p, 10).

Esse esforço voltado para a participação do negro na formação social brasileira enquanto contribuinte da cultura nacional nos revela importante passo dado na quebra dos paradigmas de um debate que tinha por principio elidir qualquer que seja a contribuição do negro na formação nacional. Lembremos que o projeto politico brasileiro do fim do século XIX, o ―branqueamento, tinha por pressuposto o desaparecimento gradativo do negro no seio da sociedade brasileira através da miscigenação.

A tese do branqueamento baseava-se na presunção da superioridade branca, às vezes, pelo uso dos eufemismos raças ―mais adiantadas e ―menos adiantadas‖ e pelo fato de ficar em aberto a questão de ser a inferioridade inata. À suposição inicial, juntavam-se mais duas. Primeiro – a população negra diminuía progressivamente em relação à branca por motivos que incluíam a suposta taxa de natalidade mais baixa, a maior incidência de doenças, e a desorganização social. Segundo – a miscigenação produzia ―naturalmente‖ uma população mais clara, em parte porque as pessoas procurassem parceiros mais claros do que elas. (A imigração branca reforçaria a resultante predominância branca.) (SKIDMORE, 1976, p, 81).

Por outro lado, essa interpretação da ―integração do negro sendo feita, como já foi dito, predominantemente pela via cultural, sem uma verdadeira ―integração econômica, social e politica, deita um véu sobre as contradições fundamentais do sistema escravista (as relações antagônicas entre a força de trabalho escrava ante os detentores dos meios de produção colonial), culminando em um entendimento do papel do negro na formação nacional em que seus esforços são voltados, por todo o período colonial e persistindo no pós – abolição, aos elementos de sincretismo[5]na formação da cultura brasileira. Esta passagem bastante elucidativa da antropóloga Lilian Schwarcz (1957-) não deixará dúvidas sobre o ponto abordado:

O ―cadinho das raças aparecia como uma versão atualizada do mito das três raças, mais evidente aqui do que em qualquer outro lugar. ―Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma quando não na alma e no corpo, a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena e ou do negro‖, afirmava Freyre, fazendo da mestiçagem uma questão de ordem geral. Freyre mantinha intocados em sua obra, porém, os conceitos de superioridade e de inferioridade, assim como não deixava de descrever e por vezes glamourizar a violência e o sadismo presentes durante o período escravista. Senhores severos mas paternais, ao lado de escravos fiéis, pareciam simbolizar uma espécie de boa escravidão, que mais servia para se contrapor à realidade norte-americana. (SCHWARCZ, 2010, p, 12).

O grande problema evidenciado nessa interpretação, a nosso ver, é o de que o negro é incorporado como agente da formação nacional como sujeito ―pré-politico, no sentido em que toda a complexidade de sua dinâmica enquanto sujeito que faz a história a partir de sua inserção nos modos de produção colonial, sua organização para lidar com a violência inerente ao sistema de produção vigente, suas táticas de resistências diversas e outras variadas formas de construção de um novo meio politico e social em que pudesse gozar de melhor situação frente sua condição de escravo, é abandonada. Isto é, as formas as quais dispôs para a construção de um novo projeto politico e social, sua contribuição na derrocada do sistema escravista para a passagem ao capitalismo (mesmo que essa transição possa não o ter beneficiado de fato) e consequente desenvolvimento nacional, haja vista a condição extrema de degradação do trabalho no qual encontrava- se, não é levado a status de elemento dinâmico quando retornamos, pela via dos autores culturalistas (em seu sentido pejorativo) à história brasileira.

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[1] Tanto Clóvis Moura, quanto Florestan Fernandes não divergiram na caracterização do que entenderam por ser o ―negro no Brasil, que de uma forma mais geral, seria aquele estrangeiro (africano) ou nacional e os seus descendentes. No seu Dicionário da Escravidão Negra no Brasil, Clóvis Moura nos diz, ―No início da colonização, o termo ―negro‖ não servia para designar africanos, conforme documentação da época, mas para denominar o indígena. Muitos historiadores confundiram o significado do vocábulo na forma como era aplicado, tomando o termo como designativo de africano. Pelo menos em São Paulo, nos primeiros anos de colonização, para designar um negro usava-se o termo tapanhumo ou peça-de-guiné. Quando queriam designar o negro para diferenciá-lo do índio, chamavam-no, também, de ―gentio da Guiné‖ e aos índios, ―gentios da terra‖. Os jesuítas ao se referirem à população da Colônia, sempre usavam o termo negro como sinônimo de índio. Padre Manoel da Nobrega, em carta datada de 1549, pouco depois, portanto, da chegada dos primeiros grupos africanos no Brasil, já escrevia: ―e uns casam com algumas mulheres, se acham outros com as mesmas negras e outros pedem tempo para vender as negras‖. O mesmo autor afirma depois: ―e é desta maneira que fazem pares com os negros para lhe trazerem a vender o que tem e por engano enchem os navios deles e fogem com eles; e alguns dizem que o podem fazer por os negros já terem feito mal aos cristãos‖. Nos inventários e testamentos do primeiro século da colonização, faz-se invariavelmente, a distinção entre o negro e o índio, designando-se a sua origem, isto é, se é da terra ou da Guiné (africano).‖ (MOURA, 2013, p, 288). Para Florestan Fernandes, também fica claro nesta passagem que veremos que o ―negro, para o autor, é aquele africano trazido para exercer o trabalho compulsório (tornando-se escravo) no Brasil. Nas palavras de Florestan, ―A história do negro em São Paulo se confunde, durante um largo período de tempo, com a própria história da economia paulista. Os africanos, transplantados como escravos para a América, viram a sua vida e o seu destino associar-se a um terrível sistema de exploração do homem pelo homem, em que não contavam senão como e enquanto instrumentos de trabalho e capital. Em São Paulo, essa regra não sofreu exceção‖. (FERNANDES, 2008, p, 27). [2]Dentre diversos autores, podemos citar, Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Edson Carneiro, Abdias do Nascimento, Gilberto Freyre, Roger Bastide, Luiz Luna, e os autores aqui estudados, Clóvis Moura e Florestan Fernandes. [3]Mudanças sociais que se ocasionam quando são colocados em relações grupos culturalmente distintos, resultando em elementos culturais característicos de ambos os grupos. Neste caso particular que estudamos, o aculturado seria aquele negro escravo que já teria assimilado a língua, os hábitos e os costumes dos senhores, e comportava-se como adaptado ao sistema social vigente, a escravidão. [4]Ver, por exemplo, o livro do antropólogo norte-americano Charles Wagley, Race and class in rural Brazil de 1952.   [5]Sincretismo é a fusão de diferentes elementos culturais que acaba por resultar em um fenômeno diverso de ambos. Nesse caso, o sincretismo vem ressaltar a ideia da miscigenação na formação do Brasil.

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