Clóvis Moura: escrita intelectual negra no Mundo Atlântico

FONTEEnviado para o Portal Geledés, por José Maria Vieira de Andrade
José Maria Vieira de Andrade é Doutor em História pela Universidade Federal do Ceará; Professor da Universidade Federal do Piauí.

A escrita intelectual negra constitui uma temática que, nos últimos anos, tem atraído cada vez mais a atenção de pesquisadores e ativistas. Isso parece ser o que ocorre justamente com os legados intelectuais do escritor Clóvis Steiger de Assis Moura, um nome paradigmático para entendermos questões fundamentais do pensamento antirracista das últimas décadas. 

Neste texto, nosso propósito consiste em retomar o nome do escritor e alguns fragmentos de seu trajeto intelectual como pretexto para refletir sobre alguns desses dilemas, especialmente procurando pensar o contexto político e cultural brasileiro, nas últimas décadas do século XX e nos primeiros anos do século XXI. Os pontos debatidos fazem parte dos resultados da minha pesquisa de doutoramento, desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Ceará, defendida no ano de 2019, que aqui podem ser sintetizados em duas questões. A primeira reflete sobre o apelo que a atividade intelectual exerce sobre os indivíduos negros, que muitos ativistas acreditam, inclusive, que corresponde a uma espécie de “chamado”, uma “escolha vocacional” mais forte e mais poderosa do que a própria vontade individual. A segunda abarca o debate teórico e político sobre racismo, antirracismo e modernidade no Mundo Atlântico, especialmente acerca dos perigos e sobre a sedução que a ideia de identidade negra positivada exerce em grande parte dos textos e manifestos de muitos homens e mulheres ligados à luta contra o racismo.

O estudo foi construído a partir da análise dos livros de Moura e de parte da documentação pessoal do escritor armazenada no Centro de Documentação e Memória da UNESP-SP, a exemplo das diversas cartas e correspondências trocadas entre escritor e outros nomes que atuaram no meio intelectual, de dentro e de fora do país. Compôs ainda esse arcabouço documental, a produção sociológica do escritor publicada na forma de livros, capítulos de livros e artigos diversos.

Clóvis Moura. Fonte: site do MST.

Clóvis Moura é dono de uma vasta produção bibliográfica sobre o papel do negro na História do Brasil, ora com o olhar voltado para a reinterpretação de nosso passado escravagista, ora procurando refletir sobre os desdobramentos da luta antirracista no amplo contexto do pós-Abolição. 

No que diz respeito ao seu trajeto pessoal pelo meio intelectual na segunda metade do século XX, destacamos a forma “transitiva” como o escritor se movimentou por diversos espaços e pelas mais diferentes áreas, situando-se em uma sutil zona de fronteira localizada entre o partido político, o mundo acadêmico e os movimentos sociais. Parece ter sido por este espaço fronteiriço que Moura fez sua opção pelo jornalismo e antirracismo como as suas principais estratégias de atuação.

É nessa zona de fronteira que podemos dimensionar, igualmente, a pluralidade de eixos políticos e culturais que passaram a orientar grande parte dos encaminhamentos e reflexões da luta antirracista do escritor, especialmente a partir do início da década de 1970. Atuação que envolveu a constituição de uma diversificada rede de contatos e trocas intelectuais, conforme podemos descrever com mais detalhes observando as cartas e correspondências trocadas com diversos nomes do cenário intelectual do período.

Por meio dessas trocas de correspondências, Clóvis Moura e outros jovens fizeram transitar registros que traduzem tanto os anseios e as aspirações de se afirmarem como intelectuais no mundo da cultura e da política nacionais, como trocavam informações sobre o acesso às produções elaboradas em outras regiões mais distantes do país que dificilmente teriam acesso por outra via.

Desse modo, as correspondências trocadas entre Clóvis Moura e seus contemporâneos, permitem descortinar as formas pelas quais se deu a estruturação do campo intelectual com o qual estavam interagindo, trazendo à tona todo um conjunto de elementos que ajudam a explicar sobre como funcionava esse “pequeno mundo” particular, ou mesmo sobre a própria noção de intelectual que orientava as ações e atuações dos sujeitos envolvidos. Documentação que, assim, nos permite entender melhor sobre o lugar comum em torno do qual se constitui a concepção de intelectual e de escrita engajada presente nos seus livros, capítulos de livros e textos diversos.

Foi no trato com essa documentação que analisamos o trabalho de Moura no Instituto Brasileiro de Estudos Africanistas (IBEA), fundado por ele e outras parcerias, na década de 1970. Com o IBEA, o escritor pôde reforçar sua rede de contatos fora do Brasil, incluindo os escritores afro-latinos Zapata Olivella e Nicomedes Santa Cruz.

Esta rede de sociabilidade revelou nuances de um processo de troca em múltiplas direções. Assim, foi possível observar a constituição de um espírito antirracista fundamentado em questões diretamente ligadas à nossa particularidade político-social e da percepção de especificidades provenientes das desigualdades sociais e “casos de racismo” em nossa sociedade. Percepções que, de um modo geral, constituíram-se como elemento impulsionador para a criação de diversas entidades negras país afora, alimentadas pela convicção de que o Brasil não estava sozinho nessa batalha e/ou de que outros lugares do mundo também viviam o mesmo “drama”.Apreciação semelhante foi possível fazer a partir das análises presentes nos livros publicados por Moura no recorte em apreço, como seria o caso de O negro: de bom escravo a mau cidadão?, Brasil: raízes do protesto negro e  Sociologia do negro brasileiroIsso se deu especialmente observando a via de duplo sentido que o escritor acreditou ser possível articular nas referidas obras às noções sociológicas de raça e classe enquanto parâmetros de estudo e compreensão da sociedade.

Capa do livro “Brasil: as raízes do protesto negro”. São Paulo, 1983. Fonte: acervo pessoal.

Moura defende que, por meio da combinação das categorias raça e classe social, o antirracismo conseguiria minimizar os excessos do identitarismo negro, em sua busca e valorização por uma nostálgica origem perdida. Sendo assim, sua reflexão está em consonância com a linha de pensamento presente nos escritos de outros nomes que se projetaram nesse campo de atuação, no decorrer do século XX, sobretudo no que diz respeito à forma ambivalente de entender o antirracismo e o processo de inserção dos intelectuais negros na modernidade. Situação que, de acordo com Paul Gilroy (2001), teria acontecido com ativistas como Richard Wright, Martin Delany, Frederic Douglas e W. E. B. Du Bois.

Clóvis Moura argumenta no decorrer dos textos analisados que, no caso do Brasil, em razão de sua condição de sociedade de capitalismo dependente, não havia condições para acreditar em uma relação direta entre miscigenação e democracia. Para o ativista, no país, como em outras localidades que compartilhavam da mesma experiência histórica de convívio com a escravidão negra no passado, a presença de um componente étnico diversificado não era suficiente para “garantir” um relacionamento democrático e igualitário.

Na referida argumentação, observamos que, em parte, o escritor permanece em quase todos os textos preso a uma leitura excessivamente polarizadora desse embate teórico, advogando em prol da concepção de cultura defendida pela ala marxista. Em outras palavras, Moura enxerga a questão racial no Brasil estando ainda excessivamente preso à lógica dialética consagrada pela tradição marxista, que termina por enclausurá-lo dentro de uma matriz teórico-epistemológica evolucionista e hierarquizadora.

Por outro lado, Moura demonstra ter enxergado, no impacto causado pela crítica dos “estudos culturais”, a oportunidade para demonstrar como a teorização sobre raça, aplicada na perspectiva da dialética marxista, contribuía para minimizar os reducionismos presentes em abordagens mais ortodoxas do materialismo histórico. Nesse sentido, apesar do clima polarizador de disputa presente em sua escrita intelectual, acreditamos ser possível pensar a teorização de Moura como uma tentativa do que poderíamos chamar de busca por um “encontro possível”, entre os dois campos intelectuais. 

Esta zona de negociação, além dos enfrentamentos, envolveu também negociação de sentidos, espaços, tempos de fala, concordâncias e discordâncias. Aqui, em alguns momentos, “raça”, enquanto objeto de análise, cede lugar ao “racismo”, porém desde que este último passe a ser entendido como uma codificação ideológica e expressão prática de alienação extrema, afetando não somente o “outro” oprimido, mas o designado opressor hegemônico “branco”.

Nesse sentido, a escrita intelectual de Clóvis Moura evidencia como o pensamento ativista negro construiu uma forma de interpretar a nossa história nacional, uma dada noção de luta política e um ideal de prática intelectual, em que racismo e democracia são necessariamente pares antagônicos. Enfim, é possível concluir que Moura foi, paradoxalmente, crítico e defensor da perspectiva de que a positivação da identidade negra era uma questão necessária na luta democrática, desde que conformada aos princípios universais do pensamento dialético. Com isso, seu argumento racial se coloca com uma voz expressiva que acreditou em um renovado diálogo entre antirracismo e marxismo, ora como a promessa de uma síntese criativa, ora como uma aliança estratégica renovada contra o racismo, o capitalismo e o imperialismo, que ressoa com força ainda hoje em parte das aspirações negro-ativistas.

Assista ao vídeo do historiador José Maria Vieira de Andrade no Acervo Cultne sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): 

Ensino Fundamental: EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados); e EF09HI26 (9º ano: Discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas – negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc. – com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas).

Ensino Médio: EM13CHS101 (Identificar, analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão de ideias filosóficas e de processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais).


José Maria Vieira de Andrade

Telefone: (86) 999136522 

Doutor em História pela Universidade Federal do Ceará; Professor da Universidade Federal do Piauí. 

E-mail: zemarvi@ufpi.edu.br

Instagram: @zemarvi


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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