Basta passar os olhos pelo plenário do Congresso Nacional para constatar que ele é masculino demais e branco demais para ser representativo da população do Brasil, um país onde 52% das pessoas são mulheres e mais de 56% se autodeclaram pretas ou pardas.
Dos 513 parlamentares que compõem a atual Câmara dos Deputados, 436 são homens e 77 são mulheres.
Do ponto de vista racial, a desproporção também é flagrante: enquanto deputados federais brancos chegam a 75%, os negros são 24%. E apenas 21 (4%) desses parlamentares se autodeclararam pretos. No Senado, a sub-representação se repete: de 81 representantes, 13% são mulheres e 4% são negros.
“A situação do Brasil é de vergonha mundial. E nós precisamos reverter isso”, afirma a socióloga baiana Vilma Reis, expoente do movimento negro e feminista brasileiro e pré-candidata a deputada federal pelo PT.
Ela se refere a um movimento inédito que pretende aumentar a representatividade negra no Congresso Nacional e nas Assembleias Legislativas estaduais, chamado Quilombo nos Parlamentos.
São mais de cem pré-candidaturas ligadas ao movimento negro de várias partes do país, numa articulação da Coalizão Negra por Direitos, rede com mais de 250 organizações deste campo, que faz sua estreia na política institucional.
Quilombo nos Parlamentos reúne, até o momento, 67 pré-candidatos a deputado estadual, 31 a deputado federal, 2 distritais e 1 ao Senado, numa aliança suprapartidária que envolve PT, PSOL, PC do B, PSB, PDT e Rede Sustentabilidade.
A iniciativa será lançada nesta segunda-feira (6) em um evento na Ocupação 9 de Julho, em São Paulo. Convidado, o ex-presidente e pré-candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT) havia confirmado presença, mas anunciou neste domingo (5) que contraiu Covid e entrou em isolamento.
Para Hélio Santos, ativista histórico das questões raciais no país, que esteve à frente da articulação pela Lei de Cotas e é um dos idealizadores do Quilombo nos Parlamentos, o interesse de Lula é importante. “Precisamos de uma proposta para o Brasil que possa reduzir a assimetria bizarra que temos por aqui, e isso passa por dar centralidade à questão racial”, avalia
“Temos uma pauta importante e temos um elenco de políticas. E não me consta que esse tema esteja nas agendas dos principais pré-candidatos à Presidência e aos governos dos estados”, diz.
“Penso que as candidaturas devem se comprometer. Temos de ter um diálogo”, completa ele, que é presidente do conselho da Oxfam Brasil.
A ideia de aumentar a representação na política institucional de pessoas negras comprometidas com uma agenda antirracista de desenvolvimento está na gênese da Coalizão.
No início de 2019, um grupo de ativistas se organizou para visitar parlamentares negros em Brasília. “Com esse encontro, criamos uma possibilidade não só de articulação nossa com esses parlamentares, mas também de articulação entre eles”, conta a jornalista e escritora Bianca Santana, integrante da Coalizão.
Desde então, reuniões periódicas de parte dos ativistas, que chegaram a atuar junto a alguns daqueles parlamentares em diferentes ocasiões, deram contorno a uma agenda política da Coalizão.
Lançada em dezembro de 2019, a agenda é composta por 25 pontos, que vão do direito à educação pública, gratuita, laica e de qualidade até a demanda por uma nova política de drogas, passando por temas como demarcação de terras, violência contra a mulher, encarceramento em massa e racismo ambiental.
“O critério primordial de participação no Quilombo nos Parlamentos é o compromisso político com a agenda da Coalizão”, explica Bianca, que é diretora da Casa Sueli Carneiro. “O projeto do movimento negro para o país não é de reproduzir desigualdades, mas de justiça racial e justiça social”, diz.
“Não se trata de um Brasil para os negros, mas de um projeto dos negros para o Brasil”, completa a advogada Sheila de Carvalho, diretora do Instituto de Referência Negra Peregum e principal articuladora das ações da Coalizão no campo jurídico.
Entre as empreitadas bem-sucedidas com sua participação está aquela que resultou no pedido da ministra do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber, no último dia 27, de explicações do presidente Jair Bolsonaro (PL) sobre as políticas públicas do governo federal para a população negra –com prazo de dez dias.
Para Douglas Belchior, ativista da Uneafro Brasil e integrante da Coalizão, “o racismo é a principal faceta do bolsonarismo” e, portanto, o movimento negro é a “expressão mais evidente de antítese a Bolsonaro”.
Para Douglas, que irá disputar uma vaga na Câmara dos Deputados pelo PT em São Paulo, não se trata de “eleger negros por serem negros”. “São candidaturas do movimento engajadas na luta histórica contra o racismo no nosso país”, afirma.
Com o Quilombo nos Parlamentos, explica, a ideia é formar uma bancada para também se contrapor às bancadas conservadoras do Congresso, como a do agronegócio (com 245 deputados), a evangélica (com 201) e a da bala (306).
Douglas minimiza a diferença no número de parlamentares que a bancada do movimento negro pode atingir neste primeiro momento. “Não se trata de uma representação quantitativa, mas sim qualitativa. É a importância da agenda que vamos levar e da qualidade da nossa intervenção”, diz.
Entre os pré-candidatos a deputado federal do Quilombo nos Parlamentos há ativistas de perfis variados, como o do pastor evangélico e teólogo Henrique Vieira (PSOL-RJ), da economista e funcionária pública Roseli Faria (PSOL-DF), de Erica Malunguinho (PSOL-SP), primeira deputada estadual trans de São Paulo, e da primeira advogada trans do Pernambuco, Robeyoncé Lima (PSOL-PE).
Entre parlamentares que já possuem mandato e integram a iniciativa estão Benedita da Silva (PT-RJ), Talíria Petrone (PSOL-RJ) e Orlando Silva (PC do B-SP), que enxerga nesse movimento algo “natural” na busca por romper o processo de subpresentação de negros no Parlamento.
Orlando aponta que o conceito demográfico de negros, que reúne pretos e pardos, pode apresentar um entrave na superação desse desequilíbrio. Como exemplo, ele cita o caso do deputado Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara. Segundo o TSE, Lira se autodeclara pardo.
“É curioso que o Arthur Lira esteja entre os negros da Casa porque não se percebe uma ação ou identidade dele no sentido de se implementar essa agenda dos parlamentares negros”, diz Orlando, para quem esse conceito pode “impedir que nós avancemos para que o Brasil veja um Parlamento com mais pretos e pretas em posição de poder”.
Segundo o parlamentar, ao longo do processo de campanha eleitoral deverão ser realizadas novas agendas em conjunto entre os pré-candidatos, com compartilhamento de experiências e propostas, na tentativa de fortalecer cada um deles.
Entre as pré-candidaturas estaduais do Quilombo nos Parlamentos estão a de Carmem Silva (PSB-SP), fundadora do MSTC (Movimento dos Sem Teto do Centro), e a da cantora Leci Brandão (PC do B-SP).
Simone Nascimento, da coordenação nacional do Movimento Negro Unificado, é pré-candidata À Assembleia Legislativa pelo PSOL em São Paulo. Ela faz parte de uma candidatura coletiva que também é formada por Paula Nunes, Carolina Iara e Mariana Souza.
“Queremos ocupar as Assembleias e a Câmara Federal de bonde, de quilombo, que é a forma como o nosso povo faz política”, diz ela, que integra a iniciativa da Coalizão.
Para Vilma Reis, as pessoas negras no Brasil não podem mais “entregar para outros grupos —mesmo os aliados— a tarefa de resolver as nossas demandas urgentes e estruturais porque as respostas, até agora, foram insuficientes”.
“Precisamos ter coragem para falar da agenda de saneamento básico, de enfrentamento ao feminicídio, dos crimes da mineração, da anistia a jovens encarcerados, jogados nas masmorras do país, da proteção de territórios indígenas e quilombolas”, afirma.
“Depois que os parentes indígenas montaram um acampamento em Brasília e declararam o objetivo de aldear a política, a nossa tarefa é aquilombar o Congresso Nacional.”