Coisa mais linda e a invisibilidade da mulher negra

De uma forma abrangente a série aborda pautas muito importantes relacionadas a vivencia da mulher e o que é ser uma no Brasil em meados da década de 50. Feminismo, violência e até o feminicídio é trazido de forma explícita e direta no enredo da série, entretanto a abordagem ao racismo e as outras formas de opressão sofridas por diferentes grupos de mulheres não foram trazidas com a mesma urgência, o que soa o discurso um pouco vazio, artificial e preocupante. 

A serie conta com quatro mulheres que exercem os papais principais e entre elas há somente uma mulher negra: Adélia. 

Adélia é uma mulher negra e se formos observar de uma forma crítica é possível perceber que o papel exercido por ela é o mais comum entre as pessoas negras: moradora do morro, tem uma filha pequena, de início é mãe solteira e trabalha como empregada doméstica. Efetivamente esse perfil condiz com a realidade de uma mulher negra da época.

 Contudo é notório a forma como a voz de Adélia é silenciada durante a série e como ela estava sempre em degraus a baixo em relação aos outros personagens. Sempre obedecendo e agindo de maneira retraída, a personagem nunca se destacou de forma grandiosa como as outras personagens. Até aqui a gente precisa entender que a luta de uma mulher negra vai além das lutas por igualdade de gênero, pois além dessa precisamos lutar pela igualdade racial, o que torna o processo extremamente mais complexo e doloroso. 

De uma forma muito clara a série apresenta a diferença do que é ser uma mulher branca que pertence a alta burguesia e uma mulher negra moradora do morro. As lutas são diferentes: enquanto Malu lutava por independência e uma vida livre do patriarcado, além desses, Adélia buscava igualdade racial, alfabetização e valorização enquanto uma mulher negra em uma sociedade machista e racista.

É nítido a forma como Adélia continua em posições subalternas quando conhece Malu, estabelece uma sociedade e coloca em andamento a ideia do Clube de músicas. Os serviços mais baixos são destinados a Adélia, enquanto Malu, por sua vez, é quem decide, resolve e vai atrás de todas as coisas.  

O grande problema é que em nenhum momento a serie apresenta “soluções” para o racismo como faz com o machismo. Em todo o tempo a gente percebe que, ao se impor, as mulheres brancas ganham destaques na sociedade, enquanto a única mulher negra ~como personagem principal~ continua nas mesmas posições e sofrendo as mesmas opressões desde o início. Mesmo se tornando sócia e parceira de Malu, Adélia segue se submetendo a situações de humilhação e continua obedecendo as relações de poder de forma indireta como acontece na sociedade atual.

E pensando em um contexto atual e real, imagino que uma imensidão de mulheres negras tenha se identificado com o papel exercido por Pathy Dejesus (Adélia). Todos os dias somos silenciadas ou tidas como ignorantes e mal educadas quando reagimos ao racismo… Da mesma forma que ouvimos diariamente que precisamos ter calma, já que a estrutura social é racista e muitas pessoas não percebem que estão reproduzindo um comportamento ruim e prejudicial.

Ainda citando a sociedade atual, é perceptível as diferenças de raça e classe que permeiam entre as mulheres. Dificilmente vemos uma mulher ocupando lugares de poder e quando esse evento raríssimo acontece, mais difícil ainda que seja uma mulher negra nessa posição. 

O que precisamos ter em mente para desconstruir é que a base do feminismo, em si, é seletiva desde sua primeira onda, pois nessa época as lutas eram em prol da garantia de direitos das mulheres da classe média, enquanto os direitos das mulheres negras e marginalizadas continuavam sendo negados com força. O feminismo atua de uma forma universal e excludente esquecendo que mesmo dentro do “coletivo mulheres” há também formas de opressão e dominância entre as mesmas.

Partindo dessa linha, a gente consegue entender que o movimento não pode tratar tudo como sendo algo universal, pois essa universalidade gera exclusão e seletividade quando trazemos à tona que mulheres brancas fazem parte de uma raça dominante e que, consequentemente, tem o poder de oprimir mulheres negras, indígenas ou mulheres pertencentes a outras raças minoritárias. 

Para discutirmos a igualdade de gênero devemos pensar as diferenças raciais como uma estrutura que também mata pessoas diariamente, caso contrário todo discurso não passa de algo totalmente superficial e egoísta. Mas nunca, em momento algum, podemos negar ou diminuir uma luta, no entanto precisamos pensar mais criticamente a forma como o feminismo tem se estabilizado na sociedade e a forma como ele tem excluído – mesmo que indiretamente – as lutas raciais e de outras formas de opressão.

No mais, o enredo trouxe grandes reflexões a cerca da vivência da mulher em um Brasil pouco antigo, mas não ultrapassado. Já conquistamos muito, entretanto ainda não o suficiente para vivermos em justiça e paz. Vamos juntas e com uma luta mais heterogenia para que nenhuma de nós se sinta só! 


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

+ sobre o tema

A babá

A polarização não hesitou em fazer de uma doméstica...

Ingrid Silva lança filtro “Turban & Beauty” no Instagram

Em busca de mais representatividade e afirmação individual de...

Marca incentiva mulheres negras a quebrar padrões de beleza

A afirmação de que "o corredor de beleza do...

Ingrid Silva e Globo Livros iniciam pré-venda de “A sapatilha que mudou meu mundo”

Há 13 anos, Ingrid Silva saia do bairro de Benfica,...

para lembrar

Filme Dear White People vai virar série da Netflix em 2017

Lançada em 2014 por meio de uma campanha realizada...

Minissérie da Netflix irá contar história da primeira milionária negra nos EUA

Minissérie da Netflix irá contar história da primeira milionária...

Chegou a hora de falar sobre Erica, a verdadeira revelação de ‘Stranger Things 2’

Para alegria dos fãs, a segunda temporada de Stranger Things chegou...

Netflix vai destinar US$ 100 milhões para bancos que pertencem a negros

(Lucas Shaw/ WP Bloomberg) – A Netflix vai transferir...

Racionais MC´s, gratidão!

Revolucionários Negros não caem do céu. Somos gerados por nossas condições. Moldados por nossa opressão. Estamos sendo fabricados em massa nas ruas. −Assata Shakur Quando fiquei...

Documentário dos Racionais MC’s ganha trailer e data de estreia na Netflix

A Netflix divulgou data de estreia oficial do documentário dos Racionais MC's. O filme chega ao streaming ainda em 2022, em 16 de novembro. Na última segunda,...

História do Racionais MC’s vira documentário na Netflix; veja as primeiras imagens

Grupo mais influente do rap nacional, o Racionais MC's vai ter a sua trajetória contada no documentário "Racionais: Das Ruas de São Paulo pro...
-+=