Ancestralidade e feminismo: de onde vem a prática feminista que você exerce?

Provocada por uma professora do mestrado obrigada por isso Carla Cristina! –, refleti acerca de minha concepção de feminismo a partir de uma ótica ancestral. O exercício era considerar as relações entre mim e as duas mulheres que vieram antes, minha mãe e minha avó. Costumo discutir com colegas como a percepção do feminismo chega nas periferias, tendo em vista que as mulheres da resistência cotidiana são as mais expostas às opressões que fortalecem as desigualdades. Cabe lembrar, como Lélia Gonzalez e bell hooks destacaram, que em geral as pautas feministas não trouxeram nenhuma novidade à realidade das mulheres que já lutavam contra dominações desde sempre. Bagagem a mulher preta e periférica tem, seu entendimento das práticas colonizadoras ainda vigentes, na encruzilhada da desigualdade, chega primeiro pela cor, depois pelo gênero. Diferente de como se deu na Europa por meio das classes, como exposto por Marx, a desigualdade no Brasil se deu pela escravidão, a subjugação e extermínio dos escravizados africanos e dos indígenas, nossos povos originários. E, então, só posteriormente resultou em uma luta de classes. Jessé de Souza fala sobre isso.

Pois bem, discuto estas questões, mas ainda não havia olhado para a trajetória ancestral das mulheres da minha família que é de origem periférica. Não dessa forma, com tamanha profundidade. De onde vem (e como vem) o feminismo que eu exerço? Não na teoria, na prática mesmo. Posso dizer que depois deste exercício me conheço melhor. Que desafio para nós mulheres é o autoconhecimento! O que eu faço é porque gosto ou à mim foi imposto? Penso como penso porque acredito ou fui moldada à este pensamento? São tantos questionamentos que eu, particularmente, sinto como se nunca chegasse a respostas definitivas. Autoconhecimento é uma aventura de trilha sem preparo físico e sem equipamentos adequados. E enquanto existirmos, nunca acaba. Faz parte da existência e significa desenvolvimento, autocuidado com você e com quem te cerca. 

Minha criação foi cercada por mulheres, venho de uma família formada majoritariamente por elas, em maioria mães chefes de família. Poucas são as casas frequentadas por mim na infância com uma presença masculina. Dona Irene, minha avó, teve quatro gestações que “vingaram”, todas de mulheres, todas de agosto. Sua gestação que não vingou curiosamente era de um menino. Minha mãe engravidou de mim aos dezessete, eu engravidei com essa idade também. Entre todos os meus planos sempre esteve presente escrever sobre minha avó. Ela tem tanto para contar, só que o analfabetismo lhe impede. Uma questão que a corrói no decorrer dos anos, uma mágoa por saber o quanto tem a oferecer e ter sido limitada. Nas terras secas de Jacobina, interior da Bahia, vem de uma família de um total de nove filhos, oito mulheres. Pai falecido ainda jovem. Cresci ouvindo suas histórias sobre a querida avó paterna por quem cultiva enorme saudade. Até hoje promete tentar reproduzir a receita de uma torta com ela aprendida. Não frequentou escola por sua mãe julgar desnecessário, já que, segundo ela, as filhas apenas aprenderiam a escrever cartas para “namoradinhos”. Atitude que minha avó não teve com suas filhas. Minha maior incentivadora nos estudos e na vida. A vejo como uma Carolina que não conhece as letras para discorrer em seu diário.

Minha mãe, por sua vez, estudou até a então oitava série. Começou a trabalhar ainda criança como babá, aos oito anos. A vida toda trabalhou muito. Na fase adulta como operadora de máquinas em uma indústria química, hoje como autônoma, vendendo de um tudo e remodelando sobrancelhas em sua vasta clientela. Não me lembro de ter morado com meu pai, foi embora quando eu tinha apenas sete meses. Digo “foi embora” porque não apenas separou-se da minha mãe, foi embora da minha vida mesmo. Residiu em bairro vizinho, mas suas visitas foram raras. Atualmente, não temos nos falado. Brown já dizia: “mais um filho pardo sem pai”. Nada novo. Dona Irene também trabalhou por toda vida. Da infância à juventude na lavoura e após a vinda a São Paulo nas chamadas “casas de família”. Como se a dela assim não fosse. Irene, mulher de pele clara, encarou desde sua chegada à grande São Paulo a exploração da elite xenofóbica. Vilma, pele mais escura e cabelos crespos, encarou desde criança o racismo ao “maternar” as crias da elite branca.

Uma lembrança que me ocorre muito é do quartinho cheio de livros que lia ao passar os dias na casa da patroa de minha avó enquanto ela trabalhava. A relação das duas era o típico “ela é quase da família”. Alguns anos sem trabalhar pela idade avançada e mantém-se amigas. Aprendi o poder de uma mulher forte em casa. Dia a dia. Muitas horas sozinha e aos dez já tinha lido Capitães da Areia, as fascinantes histórias protagonizadas por mulheres, de Sidney Sheldon, Romeu e Julieta (versão para o teatro), O Mistério do Cinco Estrelas… Ah! Coleção Vagalume… Gratidão ao acervo das minhas tias. Quando completei seis anos minha mãe teve seu segundo filho, o primeiro com meu padrasto. Foram morar juntos. Continuei morando com minha avó. Vilma, minha mãe (me desculpo por não ter citado seu nome antes), entrava às seis da manhã no trabalho, era mais cômodo para mim ficar com a avó para que me levasse à escola antes de ir ao trabalho na casa que trabalhou por mais de trinta anos. Assim foi até os meus quatorze anos quando minha mãe mudou-se e me levou com ela tempos depois. 

Passei por algumas idas e vindas de uma região a outra depois que tive meu filho, hoje com nove anos. Não me estenderei nesses pormenores, pretendo focar no que aprendi de nossa relação familiar. Confesso ser Dona Irene minha maior referência. Sempre dura, agora mais maleável, deixava transparecer todo seu amor em cada rompante ignorante que tinha. Hoje, morando em minha própria casa, compartilho com meu filho as experiências vivenciadas em meu lugar de neta. As noites dormindo na mesma cama que Dona Irene, batendo papo no escuro até o sono chegar. Falávamos de futuro, aspirações para minha vida. Sua pele continua com aquele mesmo cheirinho da minha infância. Noite dessas eu comentava em casa da importância de um legado, seja para multidões ou para uma, duas pessoas. Esse legado e peço licença à Lélia, que veio antes, para fazer uso de suas palavras para descrever minha avó –, minha avó construiu, “apesar da pobreza, da solidão quanto a um companheiro, da aparente submissão, é ela a portadora da chama da libertação, justamente porque não tem nada a perder”¹. Sua chama de libertação agora está em minhas mãos, e queima com brasa alta feito fogueira em São João.

 Nunca presenciei minha avó vivendo um relacionamento amoroso. Separou-se do meu avô, que também é seu primo de primeiro grau, quando as filhas ainda eram pequenas. Traição. Com a amiga, vizinha, evangélica. Exponho sua prática religiosa pois é algo curioso que até hoje, ao relatar, Dona Irene esbraveja e treme. Ela tem essa característica de reviver as situação ao recordar chegando a fazer representação dos fatos. Durante anos ouço dizer que não confiava em evangélicos. Até minha mãe tornar-se e então quebrar esse bloqueio que carregava por conta do trauma. Minha avó é católica. Devota de alguns santos, pratica sua fé em sua estante com imagens e velas. Não sabe ler os cartõezinhos com orações, mas os mantém em seu altar improvisado. Carrega muito de sua cultura baiana, sua fé muito fervorosa se manifesta claramente com influências das religiões de matriz afro. Na Bahia, frequentava terreiros quando precisava de direcionamento. Diziam-na filha de Santa Bárbara… Iansã. Assim como já me disseram que sou. Temos isso em comum.

Dona Irene não sabe sua idade ao certo. Acredita que sua mãe trocou as datas com uma de suas irmãs. Tirou certidão de nascimento quando decidiu vir para São Paulo, já adulta e com sua segunda filha nos braços. Seu RG diz ter sessenta e tantos, impossível já que, segundo suas contas, se assim fosse, seria apenas cinco anos mais velha que sua primeira filha. Acredita estar se aproximando dos oitenta. Me parece uma típica mulher de Áries, quase não tenho dúvidas. Quando criança era parabenizada em abril. Com essa confusão de datas tornou-se libriana, comemorando em outubro. Minha mãe, jovem, leonina. Muito leonina. Teve duas filhas e dois filhos. Meu irmão mais novo completou um ano em junho. Não sinto semelhanças entre ela e a mãe. Na verdade, creio serem bem diferentes entre si. Talvez, a força e persistência. Isto sim compartilham. Vilma veio para liderar: equipes, quando trabalhou como líder de produção; a casa, sendo responsável por tudo. Tem mil e uma atividades, vende cosméticos, lingerie, é designer de sobrancelhas – ofício que aprendeu despretensiosamente atendendo as colegas que admiravam o desenho da sua. Deixou que eu me virasse por conta própria, por me julgar autossuficiente.

As duas. Mãe e filha. Minha avó e minha mãe. Divergem em muitos aspectos. Como criar os filhos, como lidar com as finanças, e por aí vai. Ambas tiveram uma vida difícil, expostas a muitas dificuldades cruzadas na “avenida identitária”² – como muito bem denomina Carla Akotirene. Com minha avó, aprendi que tudo se consegue por mérito. Para o pobre acaba por ser palatável acreditar que as possibilidades estão em nosso esforço. Em nossas próprias mãos, como uma batalha em segurar um resquício que for de autonomia sobre nossas próprias vidas e subjetividades tão saqueadas. Com a vida, aprendi que meritocracia é uma merda. Discordo dela. Com minha mãe, aprendi que a mulher deve ser a referência no lar para inspirar. Com a vida, aprendi que essa gaiola que nos impuseram não serve para mim. Discordo dela. Com minha avó, aprendi a ser dona de mim, seguir minha intuição. Com a vida, aprendi que é disso o que eu preciso. Com minha mãe, aprendi a lidar com pessoas, ser mais diplomática. Com a vida, aprendi que também preciso muito disso. 

Minha relação com a perspectiva de ser mulher foi moldada de maneira bastante ambígua. Creio que aprendi a julgar outras mulheres tendo em vista a formação que recebi, por meio da sabedoria popular de Irene, que a mulher deve isso e aquilo, não pode isso nem aquilo outro. Na infância e no início de minha adolescência, tinha influência de uma mãe extremamente vaidosa, sempre preocupada com a aparência. Puxava minha orelha por gostar de usar camisas enormes de adulto ao invés de tops, como minhas colegas. Início dos anos 2000, a onda era usar cueca feminina com a tarja amostra e jeans cintura baixa, minha mãe amou projetar esse estilo em mim. Desde cedo descoloria os pelos do meu corpo. Mesmo achando incômodo eu amava ir ao parque aquático do Gugu, nos passeios de escola, com os pelos loirinhos. Minha mãe, muito independente, sempre chefiou sua casa, tem tatuagem, já usou piercing na sobrancelha. Evangélica há muitos anos, não perdeu sua essência e admiro seu discernimento do que ouve nos cultos do que é a vida real. Aprendeu com sua mãe essa força. 

Minha avó, sempre decidida, dura, sem meias palavras. Tudo o que conquistou foi sozinha, não queria experiências frustradas com maridos mandões e inúteis, segundo ela. Enxerga o poder da casa nas mãos de uma mulher. Entretanto, traz consigo os resquícios de uma criação antiga e machista. A mulher precisa saber limpar e cozinhar. Cumprir suas “obrigações” domésticas e pegar leve ao encontrar um marido bom. Frases dela. Odeio a tal obrigação doméstica. Até minha mãe achava que nenhum marido me aguentaria pelo jeito impetuoso. Quando disse anteriormente que o amor da minha avó se apresenta mesmo em meio ao seu jeito agressivo de verbalizar uma correção, é verdade. Vou exemplificar contando como ela lidou com minha sexualidade. Eu já era mãe. Demorou, mas aprendi que ser mãe não me anulava de ser também mulher. Que era livre. Penso que quando minha mãe olhava minha vida repensava sua trajetória e a projetava em mim. Seu jeito de amar é diferente e sei que foi o que lhe ofereceram na infância. Como disse, minha avó amansou muito com o tempo. 

Recordo que sempre admirei mulheres consideradas subversivas. Meu sonho era ser como Betty Boop, por sua beleza e sensualidade. Adulta, minhas inspirações me levam à verdadeira identificação. É o exemplo de Lélia que rege minha escrita acadêmica. É o exemplo de Akotirene que dá luz as possibilidades para minha trajetória como acadêmica e mulher – e que mulher a senhora hein dona Akotirene! (risos). Aos dez, onze anos prestava atenção em todas as mulheres, colegas. Observadora de comportamentos. Ainda faço isso. Sempre manifestei curiosidade em uma experiência homossexual. Selinhos sempre foram brincadeiras recorrentes. Aos dezenove, fiquei realmente com uma mulher e foi muito louca a sensação. Fiquei confusa. Aos vinte e um tive meu primeiro namoro com uma, durou quase três anos. Foi durante esse relacionamento que minha mãe percebeu e confessei. Não aceitava bem, ficou decepcionada, se preocupava com meu filho. Terrivelmente complicada essa fase. Foi ela quem se encarregou de contar à minha avó, que chorou e, por ter me criado, não imaginava que eu viraria “isso”. Como se o “isso” fosse um tipo de crime cometido. Aos poucos ela aceitou melhor. Tive um bom, ou melhor, mau tempo perdido em tentar entender se homo ou se hétero, até compreender que tudo bem ser bi, ou não saber também… tá tudo bem. 

O relacionamento terminou, me envolvi casualmente com outras mulheres e comecei a namorar um homem, com o qual casei. Nunca falamos sobre, mas tenho certeza de que para Vilma e Irene esse relacionamento me salvou de uma vida que não aprovavam. Penso que eu decidi ser uma mãe que não existe. Pelo menos para mim. Uma mãe que una as melhores experiências que as duas, minha mãe e minha avó, conseguiram me propiciar. E que também não cometa os mesmos erros. Meu maior medo é projetar traumas meus no meu filho. Ou criar traumas para ele. Ainda em minha barriga eu torcia muito para que não fosse menina. Veio menino. Vibrei! Hoje, vejo que era meu inconsciente me alertando a romper um ciclo que eu temia. Cresci com a cabeça sempre à mil. Sem contar que herdei a mente inquieta da minha avó, pensamentos que não param, sonhos que acreditamos nos dizer algo. Herdei tudo isso dela. Me abalo emocionalmente com essa cabeça que borbulha. É inquietante. Arrisco dizer, trágico.

Os relacionamentos ou, no caso de Dona Irene, a falta deles. As lições de vida. As experiências profissionais. A maternagem. A figura feminina. As relações com a fé. São muitas as experiências em que as duas se diferem e que fizeram parte de minha construção. O rosto fechado da minha mãe quando está em silêncio, eu também tenho. Assim como seu jeito de reclamar em casa, sei que reproduzo. As orações que aprendi com minha avó, hoje sou eu quem passo para o meu filho. A forte intuição dela, eu também tenho. Essa corporificação de ialodê que é Irene Rosa dos Santos faz com que eu me prepare para também ser uma. Uma figura feminina que, assim como ela, cuida e inspira outras mulheres. Doutora Jurema Werneck³ está coberta de razão ao recuperar a história das ialodês e líderes africanas que influenciavam mulheres negras, resistiram e ainda resistem aos mais diversos tipos de dominação. Vislumbrando essa rosa prevenida com seus espinhos que é Irene tenho a concepção de que caminhamos de ialodês a feministas. E agora, sob visão contemporânea, o chamamento é de resgate às ialodês dentro de nós.

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[1] “A mulher negra na sociedade brasileira”, presente na coletânea Lugar de Mulher (1982, p. 103).

[2] Conceito apresentado no livro “Interseccionalidade”, 2019. “O feminismo negro dialoga concomitantemente entre/com as encruzilhadas, digo, avenidas identitárias, do racismo, cisheteropatriarcado e capitalismo”, p. 23.

[3] “De Ialodês a Feministas”, artigo presente na coletânea “Vozes Insurgentes de Mulheres Negras”, Bianca Santana, 2019.

Aline de Campos é jornalista e mestranda em ciências políticas pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Pesquisa relações raciais, de gênero e ativismo político nas redes sociais.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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