Com racismo, não há democracia: justiça de transição e reparação histórica

10/10/25
UOL, por Josemeire Alves Pereira e Simone de Assis

O Brasil e o mundo assistiram atentos a um 11 de setembro coroado com a inédita condenação de um ex-presidente da República e membros da alta cúpula militar por tentativa de golpe de Estado. Ao mesmo tempo, enquanto crescia, por parte do bolsonarismo, a defesa de anistia para os condenados, a maioria da população se posicionava contrariamente a isto.

Mal respiramos e, mediante a aprovação “PEC da Blindagem”, pelo Congresso Nacional, milhares irromperam às ruas contra a anistia e contra este retrocesso que voltaria a permitir que congressistas interrompessem processos criminais contra senadores e deputados. O recado das ruas repercutiu na rejeição da PEC, pelo Senado, e na aprovação da isenção de IR para quem recebe até R$ 5.000, na Câmara dos Deputados.

A intensidade e importância destes fatos se dá à luz do período sombrio da ditadura civil-militar-empresarial (1964-1985). Em 1979, a anistia também foi objeto de disputa política, mediante a violenta repressão aos movimentos democráticos.

Um dos pontos do debate em torno da Lei da Anistia, que indultou perseguidos políticos pela ditadura, foi o fato de que dela decorria também o perdão aos militares, que desde 1964 tivessem cometido abusos de poder contra opositores, incluindo tortura e execução. Isso, enquanto mantinha condenados os considerados “terroristas”, por combaterem o regime.

Eram justos os reclames dos movimentos opositores da época por “Anistia livre, geral e irrestrita” que, ademais, não foi aceita. A violência da repressão militar de então vitimou muita gente. Frente à ameaça de retorno e atualização desse terror, soa como antídoto a condenação do STF aos que intentam contra a democracia.

Racismo x democracia

Nas últimas décadas, dentre os avanços da justiça de transição, destacam-se a reparação às vítimas da ditadura e o direito à memória e à verdade. Isto tem permitido à sociedade brasileira acessar arquivos referentes aos atos de exceção que resultaram na morte e no desaparecimento de centenas de pessoas e impactaram milhares. A liberação dos arquivos de vigilância produzidos pela polícia política do período deu-se pela promulgação da Lei de Acesso à Informação. Parcela significativa dessa documentação sensível encontra-se disponível no acervo do Sistema de Informações do Arquivo Nacional (SIAN).

Contudo, negros, indígenas, camponeses, dentre outros atingidos, são ainda pouco considerados em estudos e ações reparatórias. Agentes da história brasileira nas lutas por direitos políticos e de cidadania, ainda raramente reconhecidos como tais – o que se manifesta na banalização dos esquecimentos produzidos sobre eles.

Urge, pois, considerar o recrudescimento do racismo estrutural evidenciado na ação persecutória do período ditatorial contra a população negra, por meio de mecanismos como o Esquadrão da Morte, que via o sujeito negro como suspeito em potencial, sobretudo quando estava sem a carteira de trabalho assinada — como aponta a Grabrielle Abreu.

Movimentos negros e oposição à ditadura

“Contra a violência policial! Contra o racismo! Contra a exploração da mulher negra!” Frases estampadas em faixas fixadas no prédio da UFMG, em Belo Horizonte (MG), durante o 11º Congresso Nacional do MNU, em 1981. Pouco antes, a morte de Robson Luiz da Luz, por consequência de militar, fora um dos motes para a fundação do próprio Movimento.

A ditadura teve como um de seus pilares o mito da democracia racial, em consonância com teorias de mestiçagem do início do século XX e com a política integracionista do Estado Novo varguista, escamoteando a existência do racismo e da violência estrutural sofrida por afrodescendentes, indígenas e demais populações não brancas. Na esteira do enfrentamento político e da busca por projetos de nação mais equânimes, o ato de fundação do MNU, em 18 de junho de 1978, em São Paulo, contou com a participação de ativistas de diversos estados brasileiros.

Sua carta de princípios nos ambienta ao contexto da época: “marginalização do povo negro; desemprego; permanente repressão, perseguição e violência policial”, dentre outras violações. Assim, era fundamental a luta unificada para a conquista de “maiores condições de emprego; assistência à saúde, à educação e à habitação; reavaliação do papel do negro na História do Brasil; extinção de todas as formas de perseguição, exploração, repressão e violência”. Além do combate ao regime ditatorial e expressa solidariedade “com toda e qualquer luta reivindicativa dos setores populares da sociedade brasileira que vise a real conquista de seus direitos políticos, econômicos e sociais.”

No contexto dos debates da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, em Assembleia Geral das Nações Unidas (1965), os militares brasileiros assumiram o compromisso de promover uma educação antirracista e combater a discriminação racial. No entanto, a imagem projetada pelo Brasil no exterior não correspondia à realidade interna do regime ditatorial.

Diante das denúncias de racismo no país, o MNU passou a ser enquadrado como “inimigo interno”, conforme estabelecia a Doutrina de Segurança Nacional vigente à época. Em função disso, suas ações e de outros grupos antirracistas foram alvo de espionagem e investigação pelos órgãos de vigilância do Estado, como o demonstra documentação disponível para consulta pública no Arquivo Público Mineiro (APM).

Para Minas Gerais, o monitoramento do ativismo negro gerou pelo menos quatro pastas contendo mais de 700 documentos produzidos pela Coordenação Geral de Segurança (COSEG) e pelo Departamento de Ordem Política e Social de Minas Gerais (DOPS/MG).

Além disso, um relatório do Ministério do Exército (SIAN), proveniente de Brasília, mapeava entidades vinculadas ao Movimento Negro, com endereço das sedes, situação legal das organizações, principais dirigentes e outros membros envolvidos. Documentação que, lida a contrapelo, revela a forte agência de organizações negras por direitos sociais e políticos, à época, como observado na existência de instituições como: em Belo Horizonte (o MNU, o Centro de Integração Sócio-Cultural da Raça Negra (CISCURNE), a Associação das Mães Negras, Federação dos Candomblés de Minas Gerais, a Sociedade Afro-Brasileira e o Grupo de União e Consciência Negra (GRUCON), com atuação em BH, Varginha, Timóteo, Teófilo Otoni, Itajubá e Unaí), em Juiz de Fora (a Sociedade Cultural Lima Barreto e a Sociedade Cultural e Beneficente República Quilombo dos Palmares, o Batuque Afro-Brasileiro de Nelson Silva e o Centro Cultural 28 de Setembro) – e em Ponte Nova (o Centro Ponte-novense de Cultura e Arte Negra – CEPOCAN).

Entre lutas e conquistas, a população negra e afro-indígena segue pavimentando caminhos para uma cidadania plena. A inspiração dos ancestrais do passado move a atuação do presente, a fim de que outros futuros possam ser desenhados, na vivência concreta da democracia.

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