Comigo me desavim,
porque já não sei onde termina o corpo
e começa o medo.
Nas esquinas, o tempo se parte em rajadas,
a carne se faz alvo,
e o Estado — esse deus de farda —
abençoa o sangue que escorre das calçadas.
Rio de Janeiro, cidade de horror e de beleza,
Baía de encantos e tristezas.
Voam balas e aviões —
mas as balas, ah, essas sempre encontram suas casas,
o corpo, sempre negro,
a infância interrompida, o sonho alvejado.
Quando vemos as fotos estampadas,
os corpos, negros, pardos, são jovens —
e a sociedade festeja, irônica e estridente,
como se os “marginais” estivessem todos sendo presos,
como se justiça fosse vingança,
como se a vida já não valesse o chão em que cai.
Corpo no chão.
Corpo no chão.
E a manchete em letras frias: “Operação bem-sucedida.”
O Brasil é uma boca de ferro cuspindo nomes,
é a mão do poder cavando covas em fila,
é a ausência fazendo ronda
no beco onde dorme a esperança.
Mães enterram filhos e a pátria assiste,
fardada, envernizada, indiferente.
E a escola?
Esse espaço caótico que ainda resiste,
ainda é território de transformação,
ainda é caminho —
onde o lápis é lança,
onde o quadro é tambor,
onde o verbo é grito e futuro.
Comigo me desavim,
porque aprendi a andar olhando o chão,
como quem procura migalhas de futuro
entre os estilhaços do agora.
Aprendi que o medo é uma pedagogia,
ensinada em golpes, decretos e tiros.
E ainda assim,
há quem insista em florir —
mesmo que a flor nasça do luto.
Há quem cante o nome dos mortos
como quem convoca ancestrais
pra virar o mundo do avesso.
Comigo me desavim,
porque dentro de mim há uma nação cansada,
há um batuque de resistência,
há um grito que não se curva.
Entre o horror e a esperança,
eu sigo — ferido, vivo, visível —
escrevendo na carne o verbo existir
André Augusto Araújo Oliveira – Assistente Social. Mestre em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Social pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL). Doutorando em Arquitetura e Urbanismo pelo Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (IAU-USP). Navega nas interseções entre desigualdade social, direito à cidade, política de habitação de interesse social e estudos territoriais com práticas antirracistas. Dedica-se a olhar o que é visto e invisível na cidade, a escutar os silêncios urbanos e as ausências que fazem morada nos territórios. Entre mapas, laudos e histórias, recolhe as vozes que resistem, bordando sentidos para espaços que insistem em desaparecer.
** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.