Como a pandemia colocou o encarceramento em massa em questão

A pandemia coloca em discussão o modelo de encarceramento em massa adotado em diversos países, o fácil contágio dentro do insalubre sistema carcerário durante a pandemia tem feito surgir inéditas políticas de desencarceramento na Turquia, Irã, Indonésia, Estados Unidos e outros países, assim como uma série de rebeliões, greves e protestos no sistema carcerário. Neste artigo faço um resumo da reação no Brasil e no mundo que a pandemia tem provocado dentro das cadeias, e coloco a questão: deixaremos para morrer dezenas de milhares de pessoas dentro desse sistema racista – afinal a maioria da população carcerária brasileira é pobre e de descendência africana ou indígena – ou iremos conseguir impor mudanças nessa política eugenista e punitivista do Estado brasileiro, conquistando o desencarceramento?

Por Gabriel Silva, do Correio da Cidadania

Foto: Diêgo Holanda/G1

Na semana anterior em que foi decretada a quarentena no estado de São Paulo, um dos primeiros setores a se movimentar por conta da pandemia no Brasil foi o sistema carcerário. No dia 16/03/2020 houve o maior levante coordenado de rebeliões nos presídios de São Paulo desde 2006, há registro de rebeliões em pelo menos 15 presídios do estado e se registra mais de mil e trezentas fugas nesse dia.

Na mesma semana, os educadores da Fundação Casa, que são trabalhadores terceirizados através de ONGs e não tem vínculo empregatício direto com o Estado, entraram em greve no dia 18/03 denunciando o risco de contágio que os educadores e os adolescentes estariam expostos com a continuidade das atividades normais durante a pandemia.

Em nota a Frente Estadual Pelo Desencarceramento de São Paulo, junto a AMPARAR e outros movimentos sociais que atuam no cárcere, denunciam a situação em diversos presídios que passaram pela rebelião, entre as denúncias trazem o caso do CDP Monguaguá que durante o processo de fuga no dia 16/03 teve diversos presos baleados pela Polícia Militar, moradores do entorno do CPP relatam terem visto corpos alvejados pela região e o Movimento Mães do Cárcere denuncia o desaparecimento de cerca de 100 pessoas desde a fuga.

O principal motivo das rebeliões se deu pela suspensão da saidinha (saída temporário de presos do regime semiaberto) por conta da epidemia. A proibição de visitas, restrições de entrado do jumbo (alimentos, roupas e produtos de higiene levados aos presos por seus familiares) também têm sido denunciadas como medidas que tem piorado a já degradante situação de superlotação, insalubridade e fome a que os presos estão submetidos cotidianamente.

Já começam a aparecer notícias de contágio e dos primeiros mortos por coronavírus dentro de presídios brasileiros. É dramático o pedido feito por presos do regime semiaberto do Distrito Federal, que em vídeo que circulou nas redes sociais, todos mascarados e aglomerados numa cela superlotada, explicam a situação: “somos trabalhadores do semiaberto que foi transformado em fechado, convivendo com mais de 500 em cada ala. Entre eles, presos com febre, tosse, oprimidos com uma situação que é desumana. Escorpiões, lixo e excesso de pessoas”. Somos todos trabalhadores e possuímos endereço que pode ser localizado e fiscalizado. Pedimos que nos permitam enfrentar a situação junto às nossas famílias, pois é risco de vida”, continua. “Estamos todos juntos, se um pegar corona, todos serão contaminados. Pedimos, em nome de nossa saúde, pedimos de forma pacífica para que compreendam o desespero que estamos passando”. O vídeo completo pode ser visto aqui.

O agravamento da situação aqui no Brasil, onde a situação dos presídios já é de extrema insalubridade (lembremos do caso recente que repercutiu em janeiro deste ano, quando presos estavam sendo “comidos vivos” por bácterias em presídio de Roraima) provavelmente ainda irá gerar conflitos muito maiores, com risco de um grande número de mortes.

Em uma iniciativa importante no sentido de auxiliar os familiares de presos e presas com informações confiáveis nesse momento difícil da pandemia do Covid 19 (onde os boatos e campanhas de desinformação tem sido constantes), a Frente Estadual pelo Desencarceramento de São Paulo tem lançado boletins virtuais, que estão sendo divulgados pelo facebook e nos grupos de familiares de pessoas encarceradas (boletim 1, boletim 2, boletim 3)

Especialistas e diversas organizações reivindicam que a única forma de minimizar o genocídio anunciado que o contágio dentro do presídio irá gerar é o desencarceramento.

Medidas tímidas nesse sentido têm sido anunciadas no Brasil nos últimos dias liberando uma pequena da população carcerária em situação de risco, como a libertação de 1200 presos em São Paulo. Já no mundo podemos observar medidas muito mais amplas, no Irã foram libertados mais de 85 mil presos por causa da epidemia do coronavirus.

Na Turquia foi aprovado no congresso um projeto de lei que pode promover a libertação de mais de 100 mil presos como modo de conter a pandemia (a população carcerária do país é de 300 mil), o projeto prevê libertação de pessoas de grupo de risco, redução de penas, assim com a ampliação de medidas de prisão domiciliar e de liberdade condicional.

Na Indonésia 22 mil presos foram libertados e o governo afirma querer libertar até 30 mil, a maioria sendo beneficiados de uma política de redução de penas pra conter a epidemia. Na Polônia o ministro da justiça decretou a liberação de até 12 mil presos para o regime domiciliar como forma de diminuir o contágio.

No Afeganistão, o presidente decretou a libertação 10 mil presos, com foco em pessoas com mais de 55 anos, mulheres e jovens infratores para diminuir o contágio. Na Colômbia o presidente pretende libertar 10 mil presos com foco em pessoas com mais de 60 anos, mulheres e pessoas do grupo de risco, o decreto também veta o benefício aos condenados por violência doméstica ou sexual. O presidente da Etiópia concedeu libertação para mais de 4 mil presos por crimes menores.

Nos Estados Unidos, país com a maior população carcerária do mundo, mais de 2 milhões de presos, mesmo setores normalmente conservadores já estão debatendo abertamente como a pandemia irá causar genocídio no cárcere estadunidense e nesse contexto avança a discussão do desencarceramento para redução do impacto da pandemia. O Procurador-geral dos EUA está orientando a liberação de condenados em presídios federais, em alguns estados do país já há orientação para que pessoas não sejam presas pessoas por delitos menores e para que sejam libertados condenados que estão no grupo de risco.

Na Itália, país que tem comovido o mundo com as consequências da pandemia deixando milhares de mortos, essa situação provoca fortes rebeliões no conjunto do sistema prisional com relatos de rebeliões em mais de 40 presídios por todo o país, há relatos de centenas de fugas e 14 prisioneiros mortos oficialmente. A situação tem tido uma cobertura muito ruim pela mídia, o governo italiano tem promovido uma intensa repressão militar aos presídios por conta dessas rebeliões, porém, também foram implementadas algumas medidas de higiene reivindicadas por presos e carcereiros. Um decreto do governo também liberou para prisão domiciliar entre dois e três mil presos que estavam próximos do fim do cumprimento da pena. O governo Italiano também implementou a fabricação de máscaras com o trabalho dos presos em três presídios.

Foram registradas rebeliões em mais de 10 presídios em diferentes cidades da Colômbia com relatos de pelo menos 30 mortos. Também foram registrados rebeliões na Alemanha, no Líbano e na Tailândia. Nos EUA imigrantes detidos fizeram greve de trabalho por condições de higiene contra a covid 19 em Bristol e na Espanha imigrantes detidos fazem greve de fome e protestos por condições de saúde durante a pandemia.

Conclusão: na pandemia a escolha é entre desencarceramento ou genocídio

Nesse artigo não se trata de romantizar rebeliões ou a criminalidade, mas de enfatizar o desespero perante um genocídio anunciado. Um genocídio que pode ser facilmente evitado se medidas de desencarceramento forem tomadas.

O Brasil tem hoje a terceira maior população carcerária do mundo, estimada em 773 mil presos, o cárcere é conhecido por ser um dos principais resquícios dos tempos da escravidão, um dos mais vivos frutos da política eugenista de controle dos descendentes de indígenas e africanos que são hoje considerados população excedente pelo capital. As origens e consequenciais do cárcere no Brasil são um tema de que tratamos anteriormente.

No cárcere são impossíveis hoje de serem tomadas quaisquer das medidas de prevenção que são recomendadas, como praticar o isolamento social em celas superlotadas? Como manter a higiene sem ter acesso sequer ao básico como água e sabão?

Por mais que a maioria da população carcerária seja jovem, as condições desumanas de tortura física e mental, má alimentação, insalubridade e falta de tratamento médico que reinam no cárcere, fazem com que mesmo doenças que já são plenamente tratáveis em nossa sociedade como a tuberculose, a hanseníase, o HIV e mesmo infecções de pele, causem mortes cotidianamente nas cadeias brasileiras.

Já se estima em mais de 10 mil mortes dentro do cárcere caso medidas enérgicas não sejam tomadas. A situação pode ser ainda muito pior dependendo do alcance de contágio, pois em decisão recente o Conselho Nacional de Justiça e o Ministério da Saúde permitem enterro ou cremação sem reconhecimento para emissão de atestado de óbito; tal medida deve ser entendida como uma forma de facilitar a ocultação desse massacre anunciado.

A atual pandemia coloca para o Brasil e para o mundo um momento de inflexão histórico também para o cárcere. Vivemos uma janela de oportunidade onde o desencarceramento em grande proporção é uma possibilidade real que está sendo aplicada em diversos países. Mas se não conseguirmos conquistar essas mudanças, podemos estar à beira de um genocídio de Estado numa nova escala.

É urgente nesse sentido trazemos luz para essa situação do cárcere, pressionarmos o máximo possível pelo desencarceramento e ficarmos atentos aos acontecimentos, para que possamos agir se houver oportunidade. É necessário sermos solidários com familiares e encarcerados nesse que pode ser o momento mais difícil da nossa geração. Se não estivermos a altura desses momentos e permitirmos que tais perspectivas sombrias se confirmem, será a própria liberdade de todos nós que morrerá também.

 

Gabriel Silva é ativista da Frente Estadual Pelo Desencarceramento de São Paulo e escreve no Quilombo Invisível.

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