Como é ser uma modelo negra na indústria da moda?

Tayane Nicaccio, da Galera CH, conversou com algumas modelos sobre a falta de representatividade e o racismo na moda brasileira e internacional.

Por Tayane Nicaccio, Da Capricho

A modelo Elen Santiago, mulher negra de cabelo crespo, em uma sequencia de duas fotos
Elen Santiago. (GG Photography e Carlossales/Reprodução)

Oi, meninas! Tudo bem com vocês? Aqui é a Tayane. Hoje vim tratar de um assunto muito importante: modelos negros na indústria da moda. Apesar de estarmos no século XXI, algumas pessoas insistem em pensar de uma mesma forma. Ou seja, preferem viver dentro de uma bolha. Muita gente acredita que não existe racismo (ou que não é racista só porque tem amigos negros), privilégio branco, sexualização do corpo negro e vários outros fatores.

Na moda, é muito importante que o consumidor se veja naquela marca. Como assim? O que eu quero dizer é que toda marca deve diversificar seus modelos para que todas as pessoas possam se identificar nos catálogos das empresas. Por isso, conversei com 5 modelos que me contaram o que pensam e acreditam em relação ao negro na sociedade e no mundo da moda. Essas foram as perguntas que fiz:

1. Você acha que o negro consome?

2. Por que ainda existe essa dificuldade das marcas em colocarem modelos negros na passarela?

3. Como a indústria da moda encara os modelos negros?

4. Você já se sentiu discriminado ou já foi cortado de um trabalho por ser negro?

 

1. Elen Santiago, modelo e aspirante a atriz, 7 anos de carreira

“É incontestável que os negros representam 54% da população deste país e isso tem um poder de consumo impactante. A prova disso é que uma pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva revelou que a população negra movimenta, em renda própria, cerca 1,7 trilhão de reais por ano. Apesar de todo esse dinheiro aquecer o mercado, a maioria desses consumidores não se vê representada. Se voltarmos um pouco no tempo e olharmos para o momento atual, eu diria que percebo uma mudança. Vemos mais negros tomando espaços, porém, considero essa mudança pequena, com passos de tartaruga, principalmente na indústria da moda, porque a representação branca é maioria. Fomos um país escravocrata, a abolição da escravidão só tem 131 anos e essas feridas ainda estão vivas em nossa sociedade, conservando o racismo estrutural e esses resquícios também se permeiam na indústria da moda. Por isso, existe essa dificuldade tão grande de manter uma moda igualitária.

A representação ainda é baixa e poucos negros estão em lugares de destaque. Eu acho que se criou uma ilusão de que agora tem muito negro e que tudo está a mil maravilhas! Reconheço que passamos a ter um poder muito maior de fala com os avanços das redes sociais e isso foi positivo, porque gerou uma pressão nessa indústria e em toda a sociedade. Passamos a ocupar lugares que antes nos eram negados. Mas, lembrando novamente que nós somos maioria da população, será que essa conta fecha? Eu, como modelo, vejo isso a todo momento: produtores, fotógrafos, clientes majoritariamente brancos. E não é porque não existem profissionais negros na moda. A questão é: por que a moda, na maioria das vezes, não cede espaço para nós nesses lugares de destaque? Por que também na maioria das vezes é muito conveniente usar nossa cultura, nossa maneira de vestir, nossos costumes e não colocar nossa gente para representá-los? Outro questionamento que me vem à cabeça: essa mudança é genuína ou o negro está na moda? Iremos ver mais negros em campanhas publicitárias, nas passarelas e em outras esferas, quando também esses lugares, de fato, forem liderados por nossos profissionais.

 

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A discriminação, para mim, veio mesmo quando eu decidi assumir minha identidade de mulher negra com os cabelos crespos. Os clientes estavam acostumados com uma negra de “traços finos” e cabelos “lisos”. O cabelo crespo era um empecilho para muitos trabalhos. Me lembro que alguns clientes pediam para eu alisar o cabelo. Em alguns trabalhos, eu usava peruca. Foi um período difícil até eu conseguir me reposicionar no mercado com o meu novo perfil. Na Europa, um cliente me cortou recentemente de um trabalho porque eu não tive como aparecer de peruca para fotografar roupas de estilo clássico e sexy. Para eles, roupas sensuais e clássicas precisam ter meninas de cabelo liso. Durante muito tempo eu tive um perfil aceitável. Vivia em uma linha tênue do que é ser negra. Ouvi por muito tempo de alguns clientes que eu era uma negra linda, que tinha “traços finos” e a cor da pele maravilhosa. O fato é: quanto mais clara for a pele do negro e mais próximos seus traços se assemelham aos de um branco, menos preconceito ele vai sofrer. Isso se chama colorismo, que é a discriminação pela cor da pele.

Se a pessoa for reconhecida como negra ou afrodescendente, a tonalidade da sua pele será decisiva no tratamento que a sociedade dará a ela. E confesso que, durante muito tempo, tive esse lugar de privilégio. Eu tinha os “traços finos” e o meu cabelo era “liso” e mesmo sendo negra, o meu tom de pele era mais claro, assim cumpria esse requisito para preencher a cota de negros em um trabalho. Claro que reconheço o meu talento e meu profissionalismo, e isso também era levado em conta. Contudo, se eu fosse em um teste e tivesse uma negra retinta com as mesmas competências profissionais, para disputar uma única vaga… Eu sempre ouço: agora tem negros em capa de revista, em passarelas, em campanhas! Sim, realmente tem e não podemos negar. Agora, esses negros foram escolhidos a base do colorismo? Qual a porcentagem de negros retintos com aspectos fenotípicos como cabelos crespos, nariz largo ou arredondados e outros aspectos físicos fazem realmente parte disso? Por isso, acho que vários aspectos devem ser considerados para realmente falar em uma genuína mudança”.

2. Ana Flávia, 24, 2 anos de carreira no Brasil e 6 meses internacional

“Por estar, de certa forma, inserida no meio da moda, minha visão (posso estar equivocada) é de que se trata de um mercado de luxo. Só quem tem (grande maioria) condições financeiras para isso é a classe média alta. Meu ponto de vista, desculpa a sinceridade, é que ainda há um racismo velado, porém, ao mesmo tempo, um certo crescimento de modelos negros no mercado nivelado da moda”.

A modelo Ana Flavia, mulher negra de cabelo crespo, em uma sequencia de duas fotos
Ana Flávia. (Rio-Romaine e Philipp Raheem/Reprodução)

3. Anne Barreto, 25, 5 anos de carreira”

“Sim e consome muito. Com certeza essa dificuldade de inserir os negros na moda se dá pelo racismo estrutural de não associar o negro ao belo e a riqueza. Acredito que isso está mudando, mas temos ainda um caminho longo pela frente. A indústria da moda ainda encara os modelos negros com estranheza, mas acredito que a cada dia com maior aceitação. Fiz um trabalho onde eu era a única menina negra entre 4 meninas brancas. Todas elas levavam coroas na cabeça e eu fui a única que levava chapéu. Em um momento, a stylist colocou a coroa em mim e a dona apareceu com um sorriso sarcástico dizendo que a coroa não era para mim e que eu ficaria sempre de chapéu. Eu respirei fundo, dei um sorriso sarcástico e respondi: ‘Como nasci uma verdadeira rainha, não preciso de uma coroa, pois já nasci com ela’. Percebi como nesse trabalho eles faziam questão de tentar me mostrar que eu era inferior ali, mal sabiam eles da minha grande autoestima e isso os surpreendeu. Graças a Deus, essa foi uma das poucas situações de racismo escancarado que eu já passei, mas que me ajudou muito a saber como me posicionar e me defender”.

Anne Barreto, mulher negra de cabelo liso curo, em uma sequencia de duas fotos distintas
Anne Barreto. (Lucas Possiede e Irina Litvinenko/Reprodução)

4. Camila Simões, 21, 4 anos de carreira

“Somos os maiores consumidores desse país. Além de sermos a maioria, somente no ano passado movimentamos 1,7 trilhões de reais. Mas, diante das pesquisas feitas, somos representados imageticamente em uma porcentagem de 10%. Sim! Somente isso. Difícil de acreditar nessa realidade tão absurda. Claramente há uma incompatibilidade no mercado brasileiro e isso já passou da hora de mudar. Às vezes, nos encaram como modo de reparação histórica, às vezes como objeto, às vezes como seres ousados que não sentem vergonha de se exibir, sexualizando nossos corpos e às vezes nos tratam normalmente. Isso varia de acordo com o trabalho, com os profissionais e com os modelos, não dá para generalizar. Sobre me sentir discriminada, pode ter acontecido, mas de forma singela e delicada! O racismo na moda não é tão escancarado assim, pode até acontecer um caso ou outro isolado, mas os racistas nesse meio são inteligentes e cínicos o suficiente para manter tudo na encolha, então, no modo geral, não. Para não dizer que não aconteceram fatos desagradáveis comigo, já ocorreram, mas em diversos ambientes. Não é só no trabalho. O racismo ocupa todos os espaços possíveis, o que muda é nosso modo de lidar com toda essa loucura, seja onde for. Minha mãe me ensinou que é preciso estar preparada para tudo nessa vida, principalmente sendo uma mulher negra”.

Modelo Camilla Simões, mjulher negra d labios carnudos, e careca, em uma sequencia de duas fotos distintas
Camila Simões. (Márcio Ribeiro e Higor Bastos/Reprodução)

5. Natasha Soares

“Nós somos 54% da população, essa ideia de que negro não consome é o maior absurdo já pensado. Nós somos potência na sociedade brasileira e mesmo não aparecendo nos backstages, somos também a base da moda. A dificuldade que ainda temos no mundo da moda é sermos vistos como moeda de troca e não como modelos. Em 2019, com tantas marcas e pessoas gritando diversidade, ainda é bizarro ser necessário estabelecer uma cota para desfiles e essas cotas nem sempre serem cumpridas. Enquanto não tiver negro na passarela sempre vai ser uma obrigação ou moeda de troca. A discriminação não é escancarada e esse é o pior tipo para lidar, porque a presença de um negro em algum momento da história da marca já é usada como justificativa para ela não arcar com suas debilidades em relação à inclusão e isso é um ciclo vicioso, especialmente em relação aos negros no mercado”.

Natasha Soares, mulher negra careca, em uma sequencia de fotos distintas
Natasha Soares. (Klicka Photography e Sam Copeland/Reprodução)

Espero que, de alguma forma, essa matéria tenha despertado em você a discussão de alguns pontos importantes, sobre diversidade no mundo da moda e racismo que estão inseridos, de maneira evidente, no nosso dia a dia. As coisas podem estar mudando, mas as pessoas ainda são racistas. Está nas nossas mãos construir um futuro diferente, onde caibam todos nós. Para pessoas e marcas ultrapassadas: nós estamos de olho!

Beijinhos da garota do Blog,
@tayanicaccio

 

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