Como a polícia e os hospitais silenciam as vítimas de estupro

Texto de Danielle Campoamor. Publicado originalmente com o título: “How Police And Hospitals Shut Down Rape Victims” no site Buzzfeed em 05/12/2014. Tradução de Bia Cardoso para as Blogueiras Feministas.

Por  Danielle Campoamor, no Blogueiras Feministas

Sempre achei que se eu fosse uma vítima de agressão sexual, eu denunciaria. Mas não foi tão fácil.

Eu sempre pensei que se algum dia me torna-se vítima de uma agressão sexual, eu falaria. Eu seria a garota que descreveria os fatos, sentada num banco para testemunhas e apontando o dedo desafiador, assim como as atrizes do seriado Law & Order SVU. Não haveria dúvidas, nem mesmo uma pausa deliberada. Eu simplesmente falaria porque isso, obviamente, é o que você faz.

E então, eu me tornei uma vítima de agressão sexual.

Quando o policial estava de pé na minha frente, com um bloco de papel em uma das mãos e uma caneta gasta na outra, e me perguntou se eu queria prestar queixa, fiz uma pausa. As lágrimas escorriam pelo meu rosto, minhas pernas não paravam de tremer e a mão da minha melhor amiga, honrosa em suas intenções, não conseguiu me confortar. O policial já havia me perguntado quantas bebidas eu tinha consumido. Na verdade, ele me fez essa mesma pergunta em três ocasiões distintas. Ele já havia me perguntando o que eu poderia ter dito ou demonstrado erroneamente, antes de ser violentada em uma cama. Ele já tinha levantado as sobrancelhas, apertou seus lábios e enrugou sua testa.

E uma parte de mim já sabia o que ia acontecer.

Então, eu disse não. Eu só queria que tudo aquilo acabasse. Eu queria que o policial que estava me julgando fosse embora, eu queria que as luzes que piscavam do lado de fora da casa fossem embora e eu queria que esse sentimento nojento de inadequação desaparecesse. Eu queria me esconder debaixo das cobertas, longe do monstro que minha mãe e meu pai tinham me avisado sobre desde a escola primária.

Eu disse não.

O policial assentiu, quase grato porque o salvei da papelada extra. Ele me disse que eu poderia mudar de ideia a qualquer momento. Ele me deu um número de processo, um tapinha condescendente na parte de trás das minhas costas e disse que sentia muito. Eu lhe disse que sentia muito também.

Naquela noite eu chorei até dormir. As cobertas não forneceram nenhum conforto. Não dos monstros. Nem de mim mesma.

A manhã seguinte trouxe clareza e força. Eu liguei para o departamento de polícia e, após regurgitar o número do processo, expliquei que eu tinha mudado de ideia. Eu queria fazer o meu mais novo, ainda ingênuo, ato de orgulho. Eu queria ser essa mulher forte, corajosa e orgulhosa que aponta o dedo e vai revelando os monstros que se escondem na escuridão, um deles tinha me encontrado e eu não queria que encontrasse mais ninguém.

Eu fui para a sala de emergência. Entreguei minha carteira de motorista e disse à enfermeira, com o rosto exausto, porque eu estava lá. Ela virou a cabeça para o lado esquerdo e seu olhar se arrastou pelo chão quando as palavras “relato” e “estupro” saíram dos meus lábios secos e rachados. Ela ligou para a S.A.N.E. (Sexual Assault Nurse Examiner), uma enfermeira especializada em atendimentos a vítimas de violência sexual, e me levou para uma sala vazia.

Foi lá que eu fui violentada novamente. Só que desta vez, isso aconteceu com a minha concordância. Eu balancei a cabeça afirmativamente, me comprometi verbalmente e intencionalmente indiquei partes de mim. Eu concordei em ter partes do meu corpo examinadas, fotografadas e catalogadas, transformando a minha carne em evidência. Eu chorei quando um estranho me pediu para mostrar as marcas no meu peito esquerdo. Fechei os olhos enquanto a enfermeira realizou o exame interno.

Uma semana se passou. Eu estava prestes a ter uma reunião com um detetive que já havia analisado os depoimentos e o relatório da polícia. Mais uma vez, eu fui levada para um quarto pequeno. Um advogado especializado em defender vítimas de crimes estava sentado no sofá de frente para mim. Sentei-me próxima do detetive, que  parecia estar com os olhos marejados. Ele falou sobre seu tempo no departamento, o número de anos que ele tinha trabalhado com mulheres que também estiveram na minha situação. No começo isso me confortou. Ele sabia o que estava fazendo.

E, em seguida, as perguntas começaram.

E então eu soube.

Perguntaram-me quantas bebidas eu tinha tomado. Eu respondi honestamente. Perguntaram-me sobre quaisquer conversas que tínhamos tido anteriormente. O que eu disse? Por algum acaso eu passei a ideia de que aquilo seria OK? Perguntaram-me o que eu estava vestindo. Será que eu estava incitando? Eu estava convidando? Era realmente minha culpa?

Eu estava mesmo dizendo a verdade?

O detetive me explicou que as mulheres ficam “confusas” com uma certa regularidade. Ele explicou que muitas mulheres sentam na minha cadeira e mentem de forma desafiadora, até que não conseguem mais mentir. Ele me disse que bebidas, julgamentos e constrangimentos, e até mesmo namorados, podem contribuir para que uma mulher continue a fazer um jogo de mentiras. Ele me perguntou se era isso o que eu estava fazendo. Eu estava confusa? Eu tinha vergonha? Afinal, eu tinha bebido.

Eu disse que não.

O detetive assentiu, quase irritado porque não o salvei da papelada extra. Ele me disse que faria o possível, mas que muitas vezes casos do tipo “ele disse/ela disse” não chegam a lugar nenhum. Ele me garantiu que, mesmo que não conseguisse nada, um relatório seria registrado. Eu acho que ele pensou que isso seria reconfortante.

Isso foi há quase dois anos. Nada aconteceu. A evidência está arquivada, o detetive está fora de contato e o monstro ainda está escondido.

Eu acabei me tornando uma vítima de agressão sexual, e eu consegui dizer algo. Eu fui a garota que fez o relato, mas eu não me sentei no banco das testemunhas ou apontei o dedo desafiante ou agi como as fortes atrizes do seriado Law & Order SVU. Eu realmente mudei de ideia e eu fiz deliberadamente uma pausa. Mas, no final, eu disse algo.

Eu disse não.

E agora, eu estou dizendo não, novamente. Eu digo não sinta medo do detetive que está atrás da mesa, de verdade, acredite em você. Eu digo não para interrogar uma mulher quando partes de seu corpo estão sendo catalogadas, juntando poeira e indiferença. Eu digo não para sobrancelhas julgadoras, lábios de desprezo e testas negligentes. Eu digo não para a culpa descansando sobre a garota sentada na borda de uma mesa de exame. Eu digo não ao fardo da inocência caindo sobre a garota com os machucados.

Não mais.

Autora

Danielle Campoamor é escritora freelance e vive em Seattle, Estados Unidos. Escreve para o The Seattle Times, Thought Catalog e Elite Daily. Escreve no blog: A Twenty Something Nothing. Twitter:@DCampoamor.

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