Era 1909 e as mulheres nem sequer tinham o direito de votar no país. A Lei Áurea, que marcou o fim da escravidão na letra da lei, sem qualquer tipo de reparação, tinha apenas 21 anos desde sua promulgação.
Em meio a uma turma com outros 47 colegas, todos homens, a presença daquela mulher negra entre os formandos da Faculdade de Medicina da Bahia era o improvável.
Baiana nascida em 1884 em São Félix, na época um dos principais entrepostos comerciais do Recôncavo baiano, Maria Odília Teixeira é a mais antiga médica negra que se tem registro historiográfico no Brasil.
Era filha de José Pereira Teixeira, um médico branco que não tinha posses, mas era respeitado na cidade, e de Josephina Luiza Palma, mulher preta cuja mãe havia sido escravizada e depois alforriada.
Com 13 anos, deu o seu primeiro passo de enfrentamento em um país racista e hostil ao protagonismo da mulher. Deixou a cidade de Cachoeira e foi para Salvador, onde se matriculou no Ginásio da Bahia, espaço de formação das elites de homens brancos de então da capital baiana.
Saiu de lá bacharela em ciências e letras, formação para quem na época seguiria a carreira no magistério. Os estudos, segundo relato de familiares, tornaram Maria Odília uma mulher culta. Dominava francês, grego e latim.
Mas ela decidiu ir além e, seguindo os passos do pai e os de um dos irmãos, ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia em 1904.
“Havia uma espécie de projeto familiar. Não que ela fosse predestinada a ser médica, mas o caminhar dentro das letras mostra que ela teve essa escotilha, essa possibilidade que obviamente só foi acessada por ser filha de um médico branco”, explica Mayara Santos, mestre em história pela Universidade Federal da Bahia que estudou a vida de Maria Odília.
Na faculdade, Maria Odília foi a única mulher entre os 48 alunos da turma, um padrão que se repetiu com todas as mulheres que ingressaram na Faculdade de Medicina da Bahia até os anos 1920.
Também era comum entre as pioneiras que fossem contemporâneas na faculdade de algum parente que servia como espécie de tutor das alunas mulheres nas salas de aula. Maria Odília foi tutorada pelo irmão, Joaquim Pereira Teixeira, que havia ingressado no curso dois anos antes.
Ela foi a sétima mulher a se formar em medicina na Bahia, a primeira no século 20 –as outras seis pioneiras concluíram o curso ainda no século 19. Formou-se em 1909 após desenvolver uma tese sobre a cirrose —tema incomum entre as médicas mulheres que a antecederam na Bahia, que em geral apresentavam estudos nas áreas de pediatria e ginecologia.
O estudo foi apresentado em um momento em que estavam em alta as teses ancoradas na eugenia e no racismo científico. Doenças como a cirrose, associadas ao consumo de bebidas alcoólicas, eram encaradas como moléstias ligadas à tese racista de uma suposta degeneração dos negros.
“Foi estudo pioneiro não só sobre o tema, mas pela forma como ela discute. A tese de Maria Odília tratou da cirrose, mas passou ao largo desse debate. Ela não adotou o caminho mais fácil na época que era recorrer ao racismo científico”, afirma a historiadora Mayara Santos.
Depois de formada, Maria Odília voltou para Cachoeira, onde começou a atuar como médica. No início, muitos dos atendimentos eram tutelados pelo pai, o irmão ou algum outro médico. Com o passar do tempo, passou a trabalhar sozinha, tendo uma clientela majoritariamente feminina.
Na época, não raro aparecia em notas de colunas de jornais da região, quase sempre com agradecimentos de pacientes.
Em 1914, cinco anos depois da formatura, foi convidada a voltar para Salvador e lecionar clínica obstétrica. Retornou e se tornou a primeira professora negra da Faculdade de Medicina da Bahia. As aulas práticas eram na Maternidade Climério de Oliveira, que existe até hoje no bairro de Nazaré, em Salvador.
“Imagine o que era uma mulher negra, que não era rica, e de repente se torna livre-docente em obstetrícia. Ela tinha muita capacidade profissional”, conta o médico José Leo Lavigne, 99 anos, um dos dois filhos de Maria Odília.
A experiência na docência, contudo, não durou muito tempo. Segundo relatos da família, o pai de Maria Odília estava com a saúde deteriorada e, por isso, ela voltou para Cachoeira em 1917. A família, então, mudou-se para Irará, no sertão baiano, em busca de uma melhora na saúde do patriarca.
Foi nesta época que ela conheceu seu futuro marido, Eusínio Lavigne, advogado de uma família tradicional de cacauicultores de Ilhéus, sul da Bahia. Casaram-se em Irará na casa de Tertuliano Teixeira, rábula que era irmão da Maria Odília e que ajudou a custear os seus estudos.
Quando se casaram, os dois tinham 37 anos, idade considerada avançada para o casamento de mulheres na época. Para completar, Eusínio era um homem branco –quando mandou avisar à família que casaria com uma mulher negra, acharam que era mentira.
A família de Eusínio morava em Ilhéus e não compareceu ao casamento. Quando desembarcou na cidade, Maria Odília não tardou a sentir o preconceito da família do marido e da sociedade ilheense.
“Minha avó desmaiou quando viu meu pai chegando de braços dados com uma mulher negra. Quando acordou, disse: ‘Meu Deus, ela é negra mesmo’. O preconceito na época era enorme, mas depois as duas se tornaram amigas”, afirma José Leo Lavigne.
Depois do casamento, Maria Odília decidiu deixar a medicina para se dedicar à família. Teve dois filhos e não praticou mais o ofício para o qual estudou.
Em 1930, Eusínio Lavigne entrou para a política inspirado por ideias comunistas. Como tinha família influente, tornou-se intendente de Ilhéus. Mesmo no posto de primeira-dama da cidade, Maria Odília permaneceu sofrendo preconceito
“Os relatos familiares apontam que ela sofreu muito racismo nesta época. Sempre olhavam torto quando os dois iam a um evento ou entrava em um café, mesmo ele sendo prefeito. Mas ela sempre se manteve altiva”, afirma Mayara Santos.
Eusínio ficou no cargo de intendente até 1937, quando foi deposto e preso após criticar o golpe dado pelo governo Getúlio Vargas, que instaurou a ditadura do Estado Novo.
Após o imbróglio político, a família mudou-se para Salvador, onde Maria Odília permaneceu com a família até o fim da vida. Nos anos 1950, escreveu uma carta defendendo o legado do pai, cuja história inspirou o livro “Teixeira Moleque”, do então deputado e médico Rui Santos.
Maria Odília morreu em 1970, aos 86 anos. Deixou na família filhos, netos e bisnetos que também se tornaram médicos.
Para a historiadora Mayara Santos, a importância de Maria Odília Teixeira vai além da sua história em si: serve como uma lente para entender o Brasil do período pós-abolição.
Também resgata a memória de uma mulher negra na medicina, área que até hoje é um espaço predominantemente branco na sociedade brasileira.
Os próximos passos da pesquisa, diz, é tentar confirmar se Maria Odília é, de fato, a primeira médica negra do Brasil. Antes dela, 16 mulheres se formaram em medicina do brasil, mas só foram descobertos até o momento os dados raciais sobre 12 delas.
“É muito importante que a gente faça essa volta à trajetória de mulheres negras. A população negra do Brasil precisa desses exemplos. É um direito que nos foi tirado na história eurocêntrica branca. A Maria Odília é essa grande força que dá à população negra a possibilidade de sonhar.”