Os irmãos Evânia, Natália e Damião Santos, de 19, 22 e 25 anos, aprenderam tardiamente que a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea em 1888, abolindo a escravidão no Brasil. Apesar da entrada com atraso nos estudos, os três descendentes de escravos foram “alforriados” pelo diploma escolar e, agora, são os primeiros em sua família a poder sonhar com uma vaga na universidade. Mais que isso, fazem parte da primeira turma de formandos de ensino médio de uma escola quilombola no país. Moradores do Quilombo Kalunga, em Cavalcante, a 3h30 de Brasília, eles viram a luz elétrica chegar à sua comunidade, a Engenho II, apenas em 2004.
Hoje, TV, DVD e computador dividem espaço com um fogão a lenha na casa de Damião. O cavalo e a mula ainda são usados para levá-lo à roça, de onde tira sustento para ele, sua mulher, Joana, e os quatro filhos. Graças à metodologia do Telecurso, programa da Fundação Roberto Marinho, Damião corrigiu anos de atraso nos estudos e conseguiu se formar. Ele foi o orador da turma e, pela primeira vez, vestiu beca e terno.
– O curso respondia às nossas necessidades, pois podíamos ter aulas nas noites de sexta e nos fins de semana, quando não estávamos na roça – explica Damião. – Agora, quero fazer vestibular para Administração e tocar meu próprio negócio.
Projeto ele já tem. Comprou seis bicicletas para investir no bico de guia turístico, levando os visitantes da Chapada dos Veadeiros a cachoeiras de águas cristalinas.
– Com as bicicletas, também evitamos o acesso de carros até as cachoeiras. A região está crescendo e precisa de pessoas empreendedoras.
Precisa mesmo. Formado há mais de 300 anos, no sertão goiano, o Quilombo Kalunga passou mais de dois séculos isolado. Até há pouco tempo, seus moradores desconheciam o dinheiro e faziam escambo. O acesso pelas estradas de barro, repletas de nascentes d’água, ainda é difícil. Leva-se quase uma hora de carro do município de Cavalcante até Engenho II, no alto da serra. Muitos quilombolas de comunidades mais afastadas como Vão de Almas e Vão de Moleque, fazem o percurso até a cidade na caçamba de um caminhão.
A distância das metrópoles não impede Evânia de sonhar ser atriz. Tímida, ela brilhou num vestido azul durante o baile de formatura, regado a vinho de garrafão para espantar o frio, e ao som de forró com batida eletrônica.
– Faço parte de um grupo teatral, e já encenamos várias peças. A última foi uma roda de prosa baseada na história de índios e quilombolas daqui. Pensava em fazer faculdade de Artes Cênicas, mas quero continuar a estudar sem sair daqui. Tenho que cuidar da minha casa – explica Evânia, mãe de Miguel, de 2 anos.
Enquanto a universidade não chega aqui, ela vai prestar vestibular para Licenciatura em Educação no Campo. No curso à distância na UnB, eles podem continuar morando no quilombo e só precisam ir a Brasília duas vezes por ano. O problema é que, apesar da placa de inclusão digital na comunidade, o acesso à internet ainda é raro. Isso dificultou a inscrição no Enem, por exemplo. Mas Natália, a irmã do meio, não desiste do que quer:
– Quero ajudar a comunidade através da Medicina. Sei que há um longo caminho pela frente, mas cumprimos parte dele ao terminar o ensino médio. Depois que chegou a luz, ficou mais fácil estudar, pois a lamparina a diesel fazia mal à vista.
Ao lado dos irmãos na primeira fila da cerimônia de formatura, embaixo de uma palhoça, Natália viu uma festa com danças típicas locais, como a súcia. Sob o olhar da mãe, Getúlia, que não completou o ensino fundamental, ela se emocionou ao receber o diploma após a queima de fogos. O Hino Nacional foi executado com sanfona e bandurra, uma espécie de guitarra feita de buriti, cabaça e linha de anzol.
Na formatura, lado a lado, estavam o prefeito de Cavalcante, Josias Magalhães, a secretária municipal de Educação, Diranice Costa, a gerente geral de educação da FRM, Vilma Guimarães, e o presidente da associação de moradores de Kalunga, Sirilo dos Santos Rosa. Pai de Damião, Evânia e Natália, o lavrador analfabeto foi quem mais emocionou:
– Não tive chance de estudar e só sei escrever meu nome. Mas estou feliz porque meus três filhos se formaram, como os demais alunos da comunidade, que também considero filhos. Queremos acabar com esse nome de “corredores de miséria” dado aos quilombos, e que a oportunidade de estudo seja dada a todos quilombolas.
O líder comunitário já notou a diferença nas reuniões da associação de moradores. Numa comunidade patriarcal, em que algumas mulheres são impedidas de estudar pelos maridos, quem foi à escola aprendeu a argumentar e adquiriu senso crítico. Damião segue os passos de liderança do pai. Mas quer ir mais longe. E cita Fernando Pessoa.
– O poeta português nos ensina a encarar os desafios com o espírito elevado, a alma grande, bem maior que o obstáculo e mais forte que o imprevisto. É bom saber que o que estudamos nos livros sobre nosso mau começo neste país vem mudando para melhor – diz Damião.
A equipe viajou a convite da Fundação Roberto Marinho
Fonte: Globo