Consciência Racial como Consciência Cívica

Muitas pessoas interpretam o dia da consciência negra como um obstáculo à criação de um espírito cívico identificado com valores que estruturam a cultura nacional. Mas esse argumento não está restrito à discussão sobre a relevância da celebração do orgulho racial em uma sociedade multicultural. A implementação de ações afirmativas nos processos de admissão nas universidades federais e no serviço público tem gerado uma ampla discussão sobre os significados sociais da raça no nosso país. Muitos argumentam que essas iniciativas são altamente problemáticas porque promovem a racialização da nação brasileira, um processo contrário à nossa cultura cívica, categoria baseada na noção de neutralidade racial. Os críticos dessas medidas afirmam que essa política governamental tem um efeito pernicioso porque provoca a fragmentação social em uma nação que desenvolveu uma moralidade pública fundada no tratamento igualitário entre grupos raciais. Assim, ações afirmativas simplesmente, dizem essas pessoas, criam os problemas que elas pretendem solucionar ao introduzir a consciência racial como algo relevante na nossa vida social. Políticas públicas que levam em consideração a cor da pele dos cidadãos, alegam os seus opositores, comprometem um elemento central da nossa socialização: a preservação da identidade nacional como referência central para a construção das identidades dos indivíduos. Eles sugerem que o preceito da neutralidade racial fortalece e legitima a nossa consciência cívica. Dessa forma, os sentimentos de pertencimento social e orgulho nacional dos brasileiros depende da preservação de um consenso político que tem como base a ideia de transcendência racial.

 Pesquisador e professor de Direito no BrasilPost

Essa representação da nossa consciência cívica como expressão de um humanismo racial de caráter supostamente inclusivo e universalista encobre problemas particularmente graves. A referência à neutralidade racial como um aspecto descritivo da nossa sociedade está na raiz de uma narrativa responsável pela preservação da brutal desigualdade entre negros e brancos. Por muito tempo esse princípio funcionou como uma construção ideológica que procurava impedir a mobilização política em torno da raça, uma posição agora amplamente questionada por aqueles que sofrem as consequências de formas estruturais de discriminação. Eles argumentam que medidas reparativas têm importância fundamental para a construção de uma sociedade genuinamente democrática. O alcance dessa finalidade depende do reconhecimento das consequência reais da raça na vidas das pessoas, uma categoria que frequentemente define as chances que um indivíduo terá na sua vida. Ações afirmativas garantem acesso a oportunidades educacionais e profissionais; elas encontram legitimidade, afirmam os seus defensores, no princípio de justiça social que fundamenta o nosso sistema jurídico.

Devemos então nos perguntar: que tipo de consciência cívica o nosso texto constitucional pretende promover ao estabelecer a erradicação da marginalização como um objetivo central do nosso sistema constitucional? Penso que a simples existência dessa norma deve ser vista como indício inequívoco da necessidade de se firmar um compromisso coletivo com a eliminação das diversas formas da opressão racial. Isso significa que a consciência racial não deve ser pensada apenas como a identificação de uma determinada pessoa com um certo grupo populacional ou tradição cultural. Ela também deve ser vista como o reconhecimento público de que a construção de uma sociedade justa depende de ações governamentais que procuram mitigar os efeitos sistêmicos da discriminação. Nesse sentido, a consciência racial difere do ideal de neutralidade racial em um ponto importante: enquanto essa última privilegia políticas universalistas ao desconsiderar o pertencimento a grupos como algo relevante, a primeira pretende identificar as causas das persistentes disparidades entre negros e brancos. Esse diagnóstico é extremamente relevante porque oferece subsídios para a atuação das instituições estatais, atores políticos que estão constitucionalmente obrigados a promover a transformação social.

Por esses motivos, a consciência racial pode ser classificada como uma expressão da consciência cívica porque esta última deve ter como ponto de partida os preceitos que estabelecem as condições para o exercício da cidadania. Tido por muitos como um princípio estruturante do nosso sistema constitucional, a cidadania pressupõe a existência de condições igualitárias que só existem em uma sociedade na qual diferentes os segmentos gozam de mesma estima social e têm acesso às mesmas oportunidades materiais. Portanto, o dia da consciência negra traz a tona, mais uma vez, a questão da justiça social. Transformar o Brasil em uma sociedade igualitária requer o comprometimento de todos os cidadãos com a abolição das práticas sociais que perpetuam as desigualdades entre raças e etnias. Uma consciência cívica não pode ter como base um ideal moral que esconde a influência nociva do racismo nas diversas formas de interação social. O ideal da neutralidade racial adquire sentido quando a raça deixa de ser um parâmetro para impor desvantagens ou para obter privilégios; a sua defesa como princípio de justiça social reproduz a desigualdade e dificulta a construção de uma cultura pública baseada em ideais verdadeiramente democráticos.

 

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