Ativistas incentivam o amor próprio e lutam pelo fim da associação de corpo gordo com doença
Por Alexandre Putti, do Carta Capital
Época de carnaval é quando todo mundo resolve perder os quilos ganhos nas festas de final de ano e correr contra o tempo para desfilar nos bloquinhos em forma, com um corpo perfeito. Vale tudo para conseguir a tão sonhada barriga chapada: academia, marcar hora com aquela nutricionista famosa do Instagram, fazer dietas milagrosas e recorrer até mesmo a medicamentos irregulares.
Tudo certo? Na verdade, não. Tudo errado. Crescemos e vivemos em uma sociedade que nos faz acreditar na existência de um corpo considerado melhor que o outro. Mulher magra, mas não muito, porte atlético e sem celulite. Homens fortes, com músculos definidos, barriga tanquinho e bíceps inchados.
Quem define o que é um corpo perfeito? Foi o que se perguntou Alexandra Gurguel. A jornalista e youtuber de 31 anos passou por uma história comum para quem é gordo em nossa sociedade.
Desde muito nova, Alexandra sofreu pressão para emagrecer e foi induzida a acreditar que só seria bonita e interessante se um dia ficasse magra. “Desde os 9 anos, quando fiz minha primeira dieta, comecei a me odiar. Comecei a perceber meu corpo como um problema”, relembra.
Alexandra nasceu no Rio de Janeiro, uma cidade com uma cultura muito forte de deixar o corpo desnudo. Resultado: teve uma infância e uma adolescência inteiras focada em ser magra. Resultado 2: acabou desenvolvendo bulimia, anorexia, passou por uma cirurgia de lipoaspiração que retirou nove litros de gordura do seu corpo até chegar ao extremo, em 2012, de tentar tirar a própria vida, tamanha a insatisfação com as coisas. “Essa situação me fez pensar que tinha algum motivo para eu estar aqui. E viva. Foi isso que me levou ao ‘corpo livre’”, conta.
No final de 2013, ainda em recuperação, Alexandra conheceu o movimento feminista e resolveu criar um canal para falar sobre esse tema. Foi aí que nasceu o “Alexandrismo”, perfil da carioca, no qual ela fala sobre o movimento que ela chama de “corpo livre”, e que hoje já tem quase 600 mil seguidores.
O movimento nasceu em 1996, nos EUA. Lá ele é chamado de “body positive”. A ideia é que as mulheres desconstruam esse padrão de corpo perfeito e possam amar seus corpos, sejam eles qual for. É exatamente esse trabalho que Alexandra faz no Brasil.
“Um corpo livre é um corpo que entende o contexto social em que estamos inseridos, que não é culpa nossa. Que começa a se amar, a viver, dançar, andar, caber nos lugares e etc.”, ressalta a youtuber.
Outro ponto que Alexandra trata em suas postagens é a diferença entre gordofobia e pressão estética. Ela explica que uma pressão pela beleza dita “ideal”, principalmente entre as mulheres, sempre vai existir com todas, até com as mais magras. Já a gordofobia é uma questão social. “Estamos falando de acesso. Uma pessoa gorda não acha roupa com facilidade, não cabe nas cadeiras, não cabe no avião entre outras situações do cotidiano vexatórias”, explica ela, que luta por essa conscientização.
E tem dado certo. O movimento vem ganhando força na internet e incentivando que outras pessoas também falem sobre o tema. Foi o que aconteceu com a ativista Bielo Pereira. A paulistana de 27 anos é bigênero (que não tem um gênero definido) e desde sempre foi gorda, mas nunca tinha sentido o preconceito que sofria.
Ela sentiu o incomodo que seu corpo causava quando já estava terminando a faculdade, aos 23 anos. “Me apaixonei e fui rejeitada. Ali comecei a entender como era visto um corpo gordo na sociedade”, relembra.
Bielo não só começou a entender a gordofobia, mas também o racismo e a LGBTfobia, afinal ela é uma pessoa sem gênero, negra e da periferia de São Paulo. “Antes mesmo de a pessoa olhar e ver se eu era gay ou preta, já me via como gorda. A gordofobia vem antes de tudo. Até dentro da causa negra e trans eu sinto preconceito pelo meu corpo”, ressalta a ativista.
Bielo conheceu o movimento “corpo livre” em uma festa que começou a frequentar na cidade de São Paulo. Chamada de “Toda Grandona”, o evento é destinado às pessoas gordas. “Foi quando eu me senti realmente aceita dentro de uma balada e à vontade dentro de um lugar.”
E junto de inspirações na internet, como Alexandra, Bielo começou a se tornar uma influencer digital sobre a causa. Hoje, reúne quase 100 mil seguidores em suas redes sociais.
Tanto Alexandra quanto Bielo relatam em seus conteúdos um problema que, segundo elas, é uma rotina: a patologia do corpo gordo. Ambas afirmaram em suas entrevistas que são vistas como doentes e que quando passam por médicos sofrem discriminação por parte dos profissionais.
Alexandra chegou a fazer um vídeo para seu canal recriando uma situação que passou. Ela chega ao consultório relatando dor no estômago. O médico se recusou a examiná-la e resume seu problema ao excesso de peso.
“No meu conteúdo, falo sobre se amar e se aceitar. Não falo para as pessoas comerem só fast food”, enfatiza
Bielo conta que também passa por essa realidade. Ela lembra que aos 8 anos foi em uma médica e ouviu que se não emagrecesse iria morrer antes dos 20 anos. “A gordofobia vem sempre mascarada de cuidado. E se as pessoas tivessem esse cuidado, também teriam com as pessoas magras, que muitas também são doentes”, diz Bielo.
Ambas as ativistas cuidam das suas saúdes, fazem exercícios diários e mantem uma alimentação balanceada.
Seu corpo tem fome de quê?
Vanessa Tomasini é psicóloga especialista em comportamento alimentar. Em 19 anos de profissão, o que ela mais recebe em seu consultório, que fica no bairro Vila Clementino, na cidade de São Paulo, são mulheres insatisfeitas com seus corpos. E que se odeiam. Há 4 anos, ela teve a ideia de criar o projeto “Você Tem Fome de Quê? ”.
O intuito de Vanessa era democratizar a assistência que ela prestava dentro do consultório para que atingisse mais mulheres. Ela criou um site, um canal no Youtube e compartilha dicas e análises com seus quase 100 mil seguidores.
“As mulheres têm uma baixa autoestima por causa do corpo. Elas acreditam que seus valores estão única e exclusivamente no corpo. Atendo mulheres que são bem-sucedidas na carreira, mas não se amam apenas por causa do físico ”, relata a psicóloga.
A vontade de mudar para tentar se encaixar em um padrão vendido pela sociedade faz com que as pessoas acreditem que seus corpos sejam massa de modelar. “As pessoas pensam que é só seguir as regras que moldamos o nosso corpo. Isso não é uma realidade. Uma atividade física e uma boa alimentação podem trazer uma mudança corporal, mas isso não é permanente. Para que a pessoa possa se manter assim, ela precisa se manter em uma rotina que beira um atleta profissional”, explica ela.
Vanessa faz um alerta: os corpos não são iguais. “A Gisele Bündchen tem uma irmã gêmea e a irmã dela não é igual a ela. Como podemos almejar um corpo de alguma famosa se somos diferentes? Temos que entender que beleza é atemporal, genérico e tem a ver com a minha perspectiva”, ressalta.
Sobre trabalhos como de Alexandra e Bielo, Vanessa acredita ser uma iniciativa muito importante para mudar a realidade em que vivemos, pois muitos desses problemas vêm da falta de representatividade. “Televisão, cinema e a mídia em geral. Acreditamos que aquilo que é beleza e não o que vemos no espelho”, enfatiza.
E como começar o processo de mudança? Vanessa dá a dica do unfollow terapêutico. “Presta atenção em quem você segue nas redes. Cada vez que você olha para uma foto, há uma discrepância danada. Comece a seguir pessoas mais reais.”
Qual a avaliação médica sobre o assunto?
Segundo o médico endocrinologista da Faculdade de Medicina da USP Carlos Eduardo Seraphim, a obesidade é definida pelo IMC acima de 30 kg/m2 (IMC= peso/altura2), mas outros fatores são levados em conta. “IMC não é o único fator. Temos que levar outros critérios em conta, como a circunferência abdominal, a relação cintura/altura, a quantidade de gordura visceral, etc”, explica ele.
O especialista ressalta que estar acima do peso não é falta de foco ou força de vontade, como muita gente acredita. “Os estudos mostram que até 50-80% do peso do indivíduo tem influência genética, quer dizer, não é “falta de foco”, ‘falta de força de vontade’, etc.”
“Se me perguntar qual é a saída, acredito que devemos tratar as questões de saúde na obesidade com respeito e sem discriminação. Não é papel do médico estabelecer um ideal de beleza ou de peso ao paciente, embora eu saiba que infelizmente ocorre. Ainda mais, há todo um segmento de ‘mercado’ e charlatanismo que se aproveitam da fragilidade emocional de algumas pessoas para vender curas milagrosas. Gosto da expressão ‘o seu melhor peso’, quer dizer, tentar chegar em um peso mais seguro para a saúde do indivíduo, em que ele se sinta mais disposto, menos cansado, com melhor sono, etc. Para isso temos recursos com dieta/nutricionistas, atividade física/profissionais de educação física e medicamentos/endocrinologistas. Um ponto importante também é que quando colocamos metas irreais o paciente se frustra, e tem estudos mostrando que mesmo pequenas perdas de peso (5 a 7% do peso) têm grandes benefícios metabólicos.”