Cruzo epistêmico: Os sentidos de ancestralidade nas produções de Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento

Nos últimos anos, temos testemunhado a crescente presença da palavra ancestralidade no vocabulário político dos movimentos sociais. Não por acaso, mas por tudo que o termo carrega de memória, identidade e força coletiva. Nesse sentido, o presente post busca refletir junto com Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento sobre a profundidade do conceito de ancestralidade. Ao olhar atentamente para as produções dessas intelectuais negras, busco compreender como a ancestralidade é mobilizada enquanto chave analítica.

A reconstrução do pensamento negro brasileiro perpassa pela sistematização da forma como essas intelectuais inscreve em seus estudos o conceito de ancestralidade. As reflexões sobre corpo-território e amefricanidade alargam as fronteiras da análise epistemológica do mesmo, deslocando-o de um lugar meramente evocativo.

A ancestralidade, compreendida como um processo histórico de transmissão intergeracional de saberes, memórias e experiências, constitui-se enquanto corpo-território negro que não apenas carrega o continente africano, mas o reinscreve no contexto americano. Nesse sentido, não é um conceito que nos convida a uma viagem saudosista para o outro lado do Atlântico. Mas, evidencia a travessia como movimento constitutivo de identidade, no qual heranças culturais, práticas de resistência e reelaborações nos transformam no que somos: amefricanos, a síntese de múltiplas geografias e temporalidades.

Pensar sobre ancestralidade, exige mais do que referências ao passado, é necessário um mergulho na complexidade de seus sentidos e um compromisso com as formas pelas quais ela informa, sustenta e desafia modos de pensar e produzir conhecimento. Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento não escrevem apenas sobre ancestralidade; elas escrevem a partir deste conceito, uma vez que, em suas abordagens a teoria não se dissocia da experiência vivida. 

Nessa perspectiva, o conceito deixa de figurar como noção abstrata e assume o lugar de princípio organizador do mundo, E é justamente por este motivo que a utilização de ancestralidade enquanto categoria analítica possibilita que a população negra, indígena e quilombola façam a interpretação das suas próprias significações. 

Mobilizar o conceito de ancestralidade a partir das contribuições de nossas referências femininas negras é recusar seu uso enquanto vestígio do passado e transforma-lo numa força ativa na construção sociopolítica do presente, bem como, reivindicar o direito de inscrever no mundo acadêmico epistemologias que emergem de territórios, corpos e memórias historicamente subalternizados.


Ana Paula Cruz – Professora de História do Instituto Federal da Bahia, Doutora em História, com pós-doutorado em estudos afro-latino americanos pela Universidade de Harvard.


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