Cuidemos umas das outras

Ontem fui rever amigas queridas que há dois meses não via. O clima era festivo. Estávamos em grupo na noite. Íamos para a Fundição Progresso, no coração da Zona Sul, Rio de Janeiro. Saímos de uma rua e avistamos os Arcos da Lapa. Depois de uma razoável caminhada, até brinquei. Eu disse: estamos perto, entramos no cartão-postal. E dentro do cartão-postal, o grupo paralisou numa calçada. Era um bate-boca entre mulheres. Pareciam moradoras em situação de rua. Duas encurralavam e a outra recebia tapas na cara. Uma criança, um garoto negro de uns dois anos de idade, via a cena de perto. Calado, sem choro, talvez já acostumado. Olhava pra nós como se nós, ali parados, fôssemos a novidade. Podia ser filho da que batia ou filho da que apanhava. Senti vontade de pedir calma. E com calma, pedi.

Era só o que dizia, minhas mãos abertas, lentamente para cima e para baixo, querendo desacelerar a confusão: calma, calma! Por alguns segundos, os tapas pararam, mas a discussão seguia. Eu pedia calma e numa hora falei: olha a criança! Uma delas olhou pra mim: te mete não! E eu, com vontade de ajudar, fui recolocada na sensação de impotência. O grupo achou melhor seguir. Fomos. Mas fui pensando: elas vão continuar a violência, o garoto, que enquanto a briga rolava, cuidava de umas bolsas, em pé, olhos esbugalhados de medo, na espera, vai continuar assistindo os tapas, vendo o ódio mediar a convivência.

Diante do cartão-postal, tão visto, tão visitado e fotografado pelo mundo inteiro, lembrei das palavras da fotógrafa Nana Moraes, numa palestra que assisti recentemente. Autora do livro Andorinhas, sobre prostitutas de estrada, e do projeto Ausências, com mães e filhos separados pela cadeia, ela disse que não gosta que chamem pessoas marginalizadas de invisíveis. Nana falou: estas pessoas existem, de carne e osso, como eu, como vocês. E por que dizemos que são invisíveis? Elas são visíveis, muitos é que não querem vê-las. Preferem apagá-las.

Penso que meu pedido de calma nos Arcos da Lapa não foi só porque as vi, mas para que percebessem que não são invisíveis. Que tem gente que se preocupa com elas. Mas diante de tantas violências, o poder da palavra parecia nada, o pedido de calma não ecoou na urgência nervosa da rua.

Hoje, lembrei do episódio. Lembrei da criança. Pensei nas cenas que dia a dia vão compondo o seu imaginário. Pensei que tantas outras, milhões, convivem diariamente com a violência na cara, na alma e nas mãos de suas mães, avós, tias, vizinhas. Tenhamos compromisso com o futuro. Cada um. Cada uma. Bem clichê, né? Pois é. É clichê do tanto que fingimos não ver. Se cuidarmos das mulheres, estaremos cuidando das crianças também. De milhões. De todas. Das nossas. Cuidar das mulheres significa cuidar de gerações. Dos adultos e dos filhos que virão.

*Este texto foi escrito em 16 de agosto de 2018, mas infelizmente poderia ter sido hoje. Infelizmente, cenas como estas descritas não cessam de uma hora para outra nas ruas do Brasil. Por isso, vale a leitura. Por isso vale repetir “cuidemos umas das outras”. Porque o cuidado com as mulheres precisa ser permanente, vigilante, eterno. Assim como a fé por um mundo mais humano, amoroso, mais seguro para todas!

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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