Uma coleção de questões
enviado por Fernanda Vilar para PortalGeledés
Falamos muito de representatividade. De inclusão. De nos vermos como modelos para percebermos nossas potencialidades. E mais: o nosso lugar de pertencimento no mundo. Ora, ninguém ignora que as bonecas negras são a minoria da população de brinquedos no Brasil. Mas o que significaria termos um mercado onde fosse possível ter ao menos opções de bonecas?
As bonecas têm a particularidade de serem feitas a partir de uma imagem de si. Walter Benjamin, no livro Rua de mão única – Infância Berlinense (1900), explica que a criança é quem controla sua boneca – como um soberano: ela veste-a, desnuda-a, decide se ela vive, morre ou come. E mais: a criança fala por ela, através dela, e dela. Ela pode se tornar o reflexo do que os adultos fazem às crianças, ou inverter os papéis. Dessa maneira, o que significa brincar com uma boneca que não é feita à imagem de uma parte significativa da população?
Todos já nos deparamos nos nossos feeds do Facebook com um vídeo que se baseia no teste que os psicólogos Kenneth e Mamie Clark batizaram de “Doll Test” (1940)– trata-se do teste em que se apresenta às crianças uma boneca branca e uma negra e seguem-se perguntas sobre quem é a feia e quem é a bonita, quem é a boa e quem é a má… e revela-se assim a crueldade da estrutura racista de nossa cultura: as crianças negras atribuem as características positivas às bonecas brancas.
A partir de 1910, intelectuais e empresários africanos-norte-americanos começaram a se interessar pela questão da boneca negra. É o caso de R.H. Boyd, que ao procurar bonecas negras a seus filhos apenas encontrou caricaturas grotescas e começou seu próprio negocio: The National Negro Doll Company. Macus Garvey (1887-1940), um dos instigadores do movimento “Back to Africa” também lançou, a partir de 1918, uma fábrica de bonecas negras. Ele publicou artigos sobre o papel delas na construção da autoestima. Entretanto, isso não implicou uma diferença de comportamento: as crianças negras não deram necessariamente preferência à essas bonecas negras e tampouco houve diminuição de vendas de bonecas racistas feitas pela indústria de bonecas brancas.
Para ajudar a desenvolver essa discussão, proponho trazer elementos de realidades externas ao Brasil. Apresento o que foi para mim a experiência de ver a coleção de Deborah Neff, exposta na Maison Rouge, em Paris, de 23 de fevereiro a 20 de maio de 2018. Tratam-se de 150 bonecas feitas por afro-americanas anônimas, entre 1850 e 1940. Mais do que expor a diversidade de bonecas feitas de tecido, madeira ou couro, o que se expõe é uma historia cultural, política e íntima dos negros norte-americanos, de sua relação com a maternidade e do significado da infância.
“Uma coleção de questões” – é assim que Deborah Neff define sua missão que começou há vinte anos, numa viagem ao sul dos Estados Unidos. São bonecas feitas por mulheres negras e destinadas, por um lado, a suas próprias crianças: para marcar a presença de uma entidade negra nos braços de uma criança que estará na maior parte do tempo só – suprindo de alguma maneira a ausência da mãe, que trabalha para os brancos; e por outro lado se destinam às crianças brancas de quem essas mulheres cuidam. A exposição deixa claro: na maioria das vezes os filhos dessas mulheres são frutos de estupros dos senhores, cujas crianças essa mulher cuida.
Revelador dessa dicotomia e de tantos outros sentimentos confusos são as fotos expostas no percurso da exposição. São fotos antigas, onde as crianças posam com suas bonecas favoritas: e ali estão expostas as bonecas negras nos braços das crianças brancas, enquanto a boneca branca está sentada rígida no chão. O que os textos que acompanham essas fotos nos explicam é que a boneca negra é feita de um material maleável, mais agradável ao contato – e mais que isso: há uma componente sentimental, foi feita por quem cuida delas. Assim, a boneca branca, fabricada, rígida, é apenas um enfeite, dado por pais praticamente ausentes. As bonecas encarnam nesse contexto diversos significados, mais do que uma ligação íntima à pessoa que a confeccionou, ela é uma representaçãoo da negra por ela mesma, digna e, portanto, subversiva. Trata-se de um presente estratégico num quadro de negociações das relações familiares: nos braços das crianças brancas, essas bonecas negras marcam uma invisibilidade.
Essas bonecas e essas fotos são como um testemunho de uma aspiração a dignidade num contexto degradante. Um ponto alto da exposição são as bonecas a que chamam: topsy-turvies. São as bonecas reversíveis, de um lado negras, de outro brancas. Algumas vêm com um saiote, onde se pode cobrir uma extremidade ou outra. Robin Bernstein (Racial Innocence, 2013) considera-as como “cavalos de Troia” têxteis e mudas, pois as Africanas-Americanas colocavam-nas nos berços das crianças brancas. Para além dessa possível interpretação, essas bonecas com duas cabeças, ligadas por costura ao meio do corpo podem evocar a figuração dupla de maternidade (entre mãe e cuidadora) e a representação do parto e até mesmo da mestiçagem.
Ao ver essas bonecas e essas fotos me pergunto: onde estão as bonecas negras no Brasil? Que tipo de material de memória histórica poderia nos revelar tais sentimentos tão antagônicos? O que pode melhor marcar a ternura de relações humanas da cuidadora e a violência escamoteada em vários níveis que domina a vida da mulher negra?
Se lembrarmos de alguns aspectos da nossa historia colonial, podemos rapidamente fazer associações: às crianças brancas recém-nascidas se oferecia um pequeno negro escravo. São “crianças-brinquedos” que permitiam aos “pequenos brancos” se tornarem brancos, graças à tríade constituída pela cuidadora negra, a criança branca e a criança-brinquedo negra. Não era assim em Memórias Póstumas de Brás Cubas, com o menino branco e Prudêncio, seu menino-brinquedo que servia de cavalo? Se não temos ainda uma coleção que possa ilustrar esse passado para questioná-lo, temos muita literatura que mostra como perpetuamos uma tradição de abusos aos negros. Termino o artigo com uma coleção de questões, com o sentimento de urgência para a emergência de uma história em que o negro conte, em todos os sentidos da palavra.
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