Da periferia à realeza, o racismo se impõe

“Meu Deus! Meu Deus!

Se eu chorar, não leve a mal

Pela luz do candeeiro

Liberte o cativeiro social.”

(Samba-enredo de 2018 do G.R.E.S Paraíso do Tuiuti, autoria de Claudio Russo, Moacyr Luz, Dona Zezé, Jurandir e Aníbal)

O mundo assistiu, perplexo, às declarações do Príncipe Harry e de sua esposa, Meghan Markle, à apresentadora Oprah Winfrey, recém-veiculadas em diversos veículos de comunicação. E todos viram que a preocupação com a questão racial acabou por mudar o rumo da vida do príncipe e de sua mulher.

O Príncipe Harry — em verdade, Henry Charles Albert David —, nascido na Inglaterra, o sexto na linha sucessória do trono britânico, é o filho caçula do Príncipe de Gales e de sua então esposa, a Princesa Diana Frances Spencer — popularmente conhecida como Lady Di —, falecida em 31 de agosto de 1997.

As declarações do príncipe sobre alguns episódios que tiveram lugar no Palácio de Buckingham, na Inglaterra, revelaram que o racismo permeia todas as classes e não tem endereço certo, fazendo-se presente tanto nas periferias no Brasil como nas mais altas Corte, não importando o país ou o território de origem.

O Príncipe Harry, casado com uma mulher que tem a mãe negra, viu-se questionado pela realeza, que acalentava ansiedade em relação à “cor da pele” do filho do casal. Sim, a realeza cogitava qual seria a cor da pele do filho do Príncipe Harry — Archie Mountbatten-Windsor —, retirando-lhe a oportunidade de ser príncipe.

A preocupação com a cor da pele não deveria ser motivo de inquietude para a família real inglesa. No entanto, independentemente do lugar, a sociedade está acostumada a dar importância a essa característica. A propósito, a cor da pele é motivo de incômodo no mundo inteiro!!! O fato é que racismo não tem endereço certo. Ele está presente na Zona Sul, na Zona Norte ou na Zona Oeste; está presente nas comunidades e nos espaços de poder, e, em tempos de “realidade virtual”, até mesmo nas redes sociais.

Os últimos anos vêm sendo marcados por uma luta constante e inarredável contra o racismo. Imagina-se que a pressão sofrida no Reino Unido tenha sido muito acentuada, pois Harry acabou por renunciar à função de capitão-geral dos Fuzileiros Navais Reais que recebera de seu avô, o Príncipe Philip, deixando também de ser comandante de honra das Forças Aéreas Reais. Além disso, sua esposa, Meghan, chegou a pensar em suicídio (!).

No Brasil, a situação em nada difere da Inglaterra. Muito embora tenha sido assinada a Lei Áurea em 13 de maio de 1888, extinguindo a escravidão nestas terras, é fato que ainda sofremos as consequências e as agruras dessa condição. E, remetendo à situação na Inglaterra, terra da família real, sabemos que a Câmara dos Comuns do Reino Unido aprovou em 2 de março de 1807 a abolição de comércio e tráfico de escravos, porém, somente em 1838, os escravos foram totalmente libertos. E, ainda assim, decorridos cerca de dois séculos, deparamos com situações como a retratada pelo Príncipe Harry.

Em nosso país, a escravidão durou cerca de trezentos anos, com o homem negro sendo tratado como “coisa”, como “bem” de seu senhor. E a tão sonhada Lei Áurea não trouxe consigo políticas de inclusão do negro na sociedade brasileira. Muito pelo contrário: as desigualdades sociais foram perpetuadas, os meios de produção e as terras foram mantidos nas mesmas mãos de quem os detinha e a sonhada liberdade, embora oficialmente alcançada, conduziu o homem negro a um autêntico cativeiro social — cativeiro que se arrasta até os nossos dias.

Na época da Lei Áurea, o homem negro foi abandonado à própria sorte, sem assistência e sem segurança de qualquer espécie. Além disso, para conseguir algum trabalho, teria de concorrer com o homem branco em autêntico desequilíbrio de condições de acesso. E, ainda hoje, tal concorrência entre o povo negro e o povo branco tem reflexos profundos e talvez ajude a expor as desigualdades sociais, explicando, em parte, a dificuldade de a pessoa negra ocupar os espaços de poder e até mesmo, como se viu, um lugar na realeza.

O fato é que a escravidão acabou há bem mais de um século, tanto no Brasil como na Inglaterra (e em outros lugares do planeta), mas seus ecos e desdobramentos ainda são suportados pelo povo negro — em situações de violência, pobreza e racismo, no aquém e no além-mar.

Ainda hoje, testemunhamos, um pouco atônitos, a travessia por mar de migrantes africanos, em sua maioria negros, em busca de melhor qualidade de vida na Europa, fugindo da miséria, de perseguições e/ou guerras civis no Continente Africano. No entanto, a entrada na Europa não é fácil, pois a própria travessia destroça o corpo negro e seus sonhos. E o que é pior: ao se encontrar com o homem branco, do outro lado do Mar Mediterrâneo, com frequência é-lhe negado socorro. As mãos brancas, no mais das vezes, não se estendem às negras com o propósito de amparo; elas repelem e devolvem o negro à sua origem geográfica e social.

No Brasil, a situação não é diferente. Embora a maior parte da população tenha a pele negra, os negros ocupam muito pouco os espaços de poder, o que revela, a toda prova, quão distantes estamos de apagar os reflexos da escravidão. Lembramos que, em nosso país, tivemos um único presidente negro: Nilo Procópio Peçanha, nos idos de 1909–1910, figura que muitos escolheram relegar ao esquecimento. Aliás, acredito que muitos nem mesmo conhecem esse fato.

Nilo Peçanha era vice-presidente e acabou assumindo a presidência do Brasil. Na história, foi tratado como branco, mulato e até mesmo tinha sua pele embranquecida nas fotos, porque, obviamente, sua cor, após vinte anos de vigência da Lei Áurea, não era bem compreendida. Nilo Peçanha recusava sua ascendência negra e seus traços africanos, muito embora reconhecesse a própria origem humilde. Talvez isso explique, em parte, o pesadelo vivido pela esposa do príncipe, a citada Meghan Markle, que chegou a pensar em suicídio diante das angústias vivenciadas na casa real. Mas qual é a diferença entre o passado e os dias que correm? Talvez a resposta seja a seguinte: hoje, somos capazes de denunciar e soltar nossa voz!!! E isso explica, em parte, as declarações do Príncipe Harry e de sua esposa, Meghan Markle, quanto às possíveis manifestações de racismo pela família real.

O negro não pode ser príncipe? Qual é a surpresa nisso? E por que não pode? Não somos todos iguais? Não podemos ocupar os espaços de poder? E por que não podemos? A resposta é: podemos, sim. E não só podemos; temos de ocupar. A cor da pele submeteu — e ainda submete — o povo negro a um processo de exclusão histórico e de longa data.

A Lei Áurea, tão importante e tão sonhada, ainda não foi capaz de libertar o negro do cativeiro social em que viveu e vive, fato que vem à luz com a violência que lhe é imposta, com o tratamento dispensado às mulheres negras, com as diferenças salariais impostas ao negro e com a negação de acesso aos espaços de poder. Mesmo decorridos mais de cem anos desde a abolição da escravatura no Brasil ou na Inglaterra, ainda se apontam graves desigualdades sociais provocadas pela cor da pele. E tais desigualdades clamam urgente e prementemente por mudança em todos os lugares do planeta. Cessar a violência imposta ao povo negro é um imperativo. Em todo o mundo, não é incomum haver mortes decorrentes de ações policiais. Lembremos o caso do afro-americano George Floyd, nos Estados Unidos. George Floyd foi assassinado em 25 de maio de 2020 por um policial branco que o asfixiou por mais de oito minutos até a morte, mesmo diante de sua agonia ao dizer: “Stop. I can’t breathe” [Pare, não consigo respirar]!!! Respirar — literal e metaforicamente; física e socialmente.

A mulher negra, por sua vez, continua a suportar as consequências da situação de escravaria no passado. E, para ela, as consequências são ainda piores, pois carregam o peso da dupla condição: ser mulher e ser negra numa sociedade marcada pela desigualdade.

Ademais, o povo negro continua sofrendo com a diferença salarial que advém das disputas de mercado do passado. Sim, do passado, quando o negro, que havia acabado de “receber” sua liberdade, não sabia o que fazer com ela, disputando um lugar ao sol com o povo branco, que nunca havia experimentado a dor dos açoites de seu “senhor”.

Pois bem, retomando a letra do samba que serviu de epígrafe a estas linhas, vemos que “(…) falta em seu peito um coração, ao me dar a escravidão e um prato de feijão com arroz”. Em outras palavras, faltam ao Estado mais políticas públicas para acabar com as desigualdades sociais; faltam ao povo mais amor, mais fraternidade e mais respeito. Mas a esperança de que conseguiremos avançar no caminho de uma sociedade mais justa e fraterna, essa não pode faltar.

Lucia Helena Silva Barros de Oliveira é Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro; atual coordenadora de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Rio de Janeiro; mestre em Direito; e professora de Direito Penal da Fundação-Escola da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.

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