Começamos este texto prestando reverência e respeito às famílias e às histórias interrompidas de mais de 282 mil vítimas brasileiras do Covid-19 (até o dia 17 de março), conforme dados do próprio Ministério da Saúde¹. Para além de pensarmos nas irresponsabilidades de determinados grupos de pessoas que promovem aglomerações Brasil afora, pouco importando se pessoas que não são próximas ao seu círculo de amizades/familiar venham a falecer, esperando uma vaga nos hospitais, é preciso destacar que essas irresponsabilidades podem ter na ignorância intencional, deliberada
e sistemática, uma de suas origens. Ignorância esta promovida por sistemas de poder e de quem os opera.
Esses sistemas de poder nada mais querem, do que simplesmente promover a confusão de informações, o erro na tomada de decisões das pessoas na sua cotidianidade e, finalmente, a submissão subserviente, a apatia, o não questionar. Ainda mais se muitas dessas pessoas que são levadas ao erro sistemático têm empregos que mal pagam as suas contas, morrem de medo de serem violentadas em razão da sua cor de pele, gênero, sexualidade/afetividade e lugares onde moram, impedindo-as inclusive de poder circular livremente em outros espaços. Liberdade, aqui, é só para alguns e algumas.
Interessante pontuar que geralmente essas mesmas pessoas que são levadas sistematicamente ao erro, recebem informação por poucos canais de TV ou correntes de aplicativos, mandadas por “tiozões do whats”, que acham saber mais do que muitos profissionais da saúde, cientistas e professores, estes três últimos citados cada vez mais desacreditados em seus discursos.
Ou ainda: a economia não pode parar, dizem. Mas indagamos: por que se tem tanto dinheiro para emendas parlamentares, bancos, ou determinados setores dessa mesma economia brasileira, mas não para quem teve seus pequenos negócios fechados, vive de transporte de passageiros ou entrega de comida diariamente para quem é privilegiado e pode usar desses serviços, perdeu seus empregos e enfrenta uma burocracia extenuante para receber míseros reais, chamados de auxílio, enquanto pega diariamente trens e ônibus completamente lotados, só pra citar alguns exemplos? A lista de questionamentos não cabem nesses caracteres e o discurso do isolamento social em razão da pandemia vai perdendo força, justamente para parecer à maioria da população que simplesmente não funciona. O que não funciona é a forma desarticulada e contraditória do isolamento, como vem sendo realizada pelos governos federal, estaduais e municipais, se transformando em uma verdadeira arena política enquanto a pilha de cadáveres só aumenta e o luto de quem fica sequer é respeitado. Temos a hipótese de que este não funcionamento é intencional, deliberado, sistemático.
Uma definição do dicionário Michaelis² sobre o que viria a ser a ignorância e o sujeito ignorante, para trazer a este debate: o que desconhece algo, o rude, o torpe, o ingênuo, o que lhe falta malícia… essa última palavra particularmente é ótima para pensar! Porque então devemos ser nós todos maliciosos, sempre que nos relacionamos com os outros, para sermos livres da ignorância?
Porque não nos questionamos quando a violência é naturalizada, justificada em nome de manter a ordem e a segurança (muitas vezes inclusive aplaudida por parte da população) em operações policiais? Basta observar, por exemplo, a cidade do Rio de Janeiro: maior destino turístico do Brasil que movimenta milhões de reais a cada ano, mas que certamente esse dinheiro chega a conta-gotas nas comunidades cariocas, inclusive para melhoria de suas condições de moradia, asfalto e transporte, água e esgoto, meio ambiente, saúde, educação e segurança, outra palavrinha descaracterizada de seu contexto. Que é, em nosso entendimento, aconchego e proteção, jamais pisotear na cabeça de alguém e impedir a pessoa de respirar!
Até porque, muitos dos turistas que visitam o Rio de Janeiro e outros destinos turísticos do Brasil, pouco sabem que policiais (muitos negros e negras inclusive) têm licenças do Estado que o treinou³ para violentar, estigmatizar e matar aqueles e aquelas indesejáveis, e que por fim “mancham” a imagem da cidade. Como se todos e todas que vivem nessas comunidades vivessem do narcotráfico, do furto e roubo, como bem aponta Carla Akotirene (2018) ao falar das experiências cotidianas de violências das mulheres negras a partir da interseccionalidade, enquanto uma encruzilhada epistemológica, como a autora baiana costuma bem nomear.
Como se todos os brasileiros e brasileiras tivessem as mesmas oportunidades de vida que as Barbies bem nascidas de zonas de moradia privilegiadas, retratadas nas novelas de muitos autores e autoras de telenovelas, em suas mesas fartas de café da manhã em uma sacada com uma vista espetacular. Pois muitas vezes é esta a imagem que a infraestrutura turística e o próprio Estado brasileiro quer passar para o turista que se maravilha com os lugares que deseja visitar, ocorrendo aí o que afirmamos ser um falseamento da experiência e da própria imagem: quem é que, afinal, pode vivenciar o turismo? O que se quer mostrar e o que se quer esconder?
Portanto, e a partir dos breves exemplos citados neste texto: quando dizemos que a ignorância sistêmica serve a um sistema político-ideológico, dizemos que esta é deliberadamente produzida para confundir, esconder e não permitir outras visões de um mesmo acontecimento, teoria, produto, sociedades e/ou processos. Experimentos científicos realizados durante o regime nazista contra povos que eram considerados inferiores, ou mesmo experimentos científicos realizados durante a escravização oficial nas Américas com populações indígenas e negras, são terríveis exemplos da nossa história que podem ser conectados com o que escrevemos aqui sobre ignorância sistêmica. Por isso julgamos precisar falarmos dela!
O cientista estadunidense Robert Proctor (2006), ao tecer sobre a ciência produzida a partir do seio da ignorância sistêmica (agnotologia, como o autor costuma chamar), quando denuncia as barbaridades que a indústria do tabaco de seu país (com o apoio de certas instituições de ciência, inclusive) realizou na década de 1960 para vender mais cigarros e escondendo evidências nocivas à saúde, diz que a ignorância, assim como o conhecimento, andam de mãos dadas. Tanto a ignorância sistêmica quanto o conhecimento possuem um espaço, um custo e uma cara, uma vez que é decisão das instituições sobre que tipo de conhecimento ou ignorância se deve escolher, mostrar e/ou esconder, ao produzir um conhecimento e dialogá-lo com a sociedade.
Não é que a ignorância em si mesma seja um problema, até porque ninguém sabe tudo nessa vida e, francamente, nem precisa saber. Mas, pensando a partir de Proctor (2006), o ponto em questão é que tipo de ignorância é sistematizada por sistemas de poder para se levar ao erro, à violência, à morte. A ignorância sistêmica uniformiza e falseia, produzindo, enfim, uma dita verdade.
É verdade que este texto pode ter gerado mais dúvidas do que respostas e se de fato isso aconteceu, sinal de que estas provocações serviram de alguma coisa, inclusive para repensarmos certos modos de ver o mundo e de agir coletivamente. Tampouco este texto pretende ser perfeito em suas colocações e que não esteja suscetível a outros questionamentos.
Em tempos de uma pandemia que acaba revelando o pior e o melhor das pessoas e seus sistemas de vida, quaisquer análises de como sairemos, além de poder ser apressada, cai no risco de ser arrogante e que não dialoga com quem mais sofre: o imigrante, o velho e a velha, o preto e a preta, os povos indígenas, as pessoas pobres, os explorados e exploradas da terra e dos trabalhos precários, os que apanham simplesmente porque amam/desejam diferente, os que anseiam consumir um turismo digno e que fuja de marcações violentas, os que desde sua infância são retirados de sua humanidade para servir uma polícia que de segurança não tem é nada.
Urge usarmos esta fresta histórica, provocada por este bichinho chamado COVID-19 dentro de sistemas de morte, para repensarmos nossas existências, vivências e resistências. Aprendamos com a natureza: esta é diversa por excelência!
Para saber mais sobre (referências):
AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte: Letramento; Justificando, 2018.
FERREIRA, Michel Alves; CASAGRANDE, Lindamir Salete. Movimentos, tecnologia e pessoas negras: é possível um outro turismo? Revista de Turismo Contemporâneo. Natal, v.8, n.1, p. 149-167, jan./jun. 2020.
FERREIRA, Michel Alves; CASAGRANDE, Lindamir Salete. E quem disse que não é seu lugar? Por um turismo democrático e inclusivo para negros e Negras. Revista Mundi Sociais e Humanidades. Curitiba, v. 3, n. 2, p. 1-21, jan./jun. 2018.
Proctor, Robert N. Agnotology: a missing term to describe the cultural production of ignorance (and Its Study). In: Agnotology: the making and unmaking of ignorance. Organizado por Robert N. Proctor e Londa Schiebinger. Palo Alto: Stanford University Press, 2008, p. 01-33.
¹ https://susanalitico.saude.gov.br/extensions/covid-19_html/covid-19_html.html
²https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/ignorante; https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/ignor%C3%A2ncia/
⁴Conforme Ferreira e Casagrande (2018; 2020).