Da sabedoria de Nanã ao sopro sagrado de Tempo: os 80 anos de resistência de Mameto Zulmira

Nos últimos tempos a internet se tornou espaço privilegiado para celebrar datas até então desconhecidas pela grande maioria do público e o mês de julho nos oferece terreno fértil para quem gosta de festejar, como o dia do amigo, dia da mulher negra latino-americana e caribenha.

Em seu sermão dominical do último dia 25, Papa Francisco instituiu 26 de julho como dia Internacional dos idosos e avós. Na segunda-feira, as redes sociais amanheceram dividas entre a aclamação da pequena Rayssa Leal, medalhista de prata nos jogos olímpicos e declarações açucaradas às vovós. Essas celebrações são fundamentais para a reafirmação de valores como amizade, importância da mulher negra e a astúcia do tempo, elo de ligação que conecta a alegria de nossa fadinha à sabedoria das vovós. Tempo, matéria prima, energia sem a qual não há vida, por isso mesmo comemorado nos candomblés angola dia 10 de agosto.

Para nós do Terreiro Tumbenci, 26 de julho não é só dia dos avós, mas sim dia de entregar presente no Dique do Tororó, de se render as delícias do mungunzá, de agradecer e abraçar. Vinte e seis de julho é dia de Nanã. Segundo as palavras de Mameto Zulmira, Saluba, como também é conhecida, é o orixá mais antigo do universo afro-religioso. Afetuosa, acolhedora, força ancestral da filha, mãe e avó.

Aos que desejam conhecer um pouco mais sobre a natureza do candomblé, a arte é o melhor caminho. Em Cordeiro de Nanã, canção de Mateus Aleluia, nosso eterno Tincoã ensina que Saluba é a entidade primeira que veio enquanto a Terra se formava, os elementos se moviam, dando origem à lama, morada da divindade que ocupa o Templo de Savalu, no Benin. Aliás esse é o ponto de partida do imprescindível romance de Ana Maria Gonçalves: Um defeito de Cor. A história remonta o tráfico negreiro, durante o período colonial, em que a personagem principal, Kehinde, ao longo da obra se revelará mãe de Luíz Gama. Importante dizer que o principal elo da personagem com sua ancestralidade é exatamente sua avó, que antes de morrer deixa a súplica: “nunca se esqueça da África, de sua mãe, de Nanã”.

Nanã, Senhora dos segredos da vida e da morte. É da lama de Nanã que fomos moldados e a ela retornaremos. Mãe Zu, a melhor expressão de Saluba em terra, memória viva da Bahia. Tia Cidá, grande amiga e companheira. Mãe Pequena do Tumbenci. Em 2021 completam 80 anos de iniciação. Uma vida inteira voltada ao sacerdócio. 

Sábias meninas que exaltam a vida com a mesma alegria e leveza de Rayssa Leal, a sapeca que nos últimos dias nos transportou a um tempo passado, quiçá futuro, mostrando que ainda nos é permitido sonhar. 

Simbora meu povo, que o tempo não espera! É hora de festejar! 

Mãe Zu ao centro da foto no presente de Nanã, 26/07/2021. (Foto: acervo pessoal)

Rita de Cássia Hipólito

Mestre em Sociologia

Muzenza do Tumbenci de Lauro de Freitas

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

+ sobre o tema

Experiências da negritude na fotografia baiana do final do século XX

Os negros sob o olhar da câmera Nesta primeira imagem,...

A escravidão no Brasil: 130 anos de mentira

Não tenho nenhuma consideração pela comemoração da abolição da...

O mercado do “antirracismo” nas redes sociais e os fregueses brancos

As redes sociais são um grande Mercado, onde se...

Uma mãe obstinada: maternidade negra no pós-abolição (Recife, 1890)

No habeas corpus aberto em 1890 na cidade do...

para lembrar

Perseverança: uma resposta de professoras negras

Externato Perseverança Fundado em 5 de março de 1860 É o...

A naturalização de expressões racistas e o perigo da história única

Há duas semanas, assistindo ao noticiário local, fui surpreendida...

Reflexões sobre o cuidado infantil comunitário

A população brasileira é atualmente composta por aproximadamente  213,3...

Tecnologia ancestral

Saudações,  Hoje é um dia no futuro que foi sonhado...

AmarElo – É tudo pra ontem: um olhar reflexivo sobre o Brasil

Desde o lançamento do álbum AmarElo, o rapper Emicida realiza um projeto que é simultaneamente artístico e intelectual de leitura e criação de projetos...

Memórias e Reexistências em Vozes Negras do Recôncavo Baiano

“Eu conheci dois escravos. Eu conheci minha madrinha Tereza, que foi escrava e foi minha madrinha. Mamãe morou no terreno de compadre Joaquim Inácio...

Vidas que importam

As recentes mortes envolvendo negros e policiais brancos norte-americanos trouxeram à tona, mais uma vez, a discussão sobre o racismo nos Estados Unidos. As...
-+=