De Pretas para Pretas

É tão bom ter uma notícia boa pra contar. Não é mesmo? Ainda mais quando essa notícia envolve mulheres pretas. No último dia desse mês de junho de 2024 Belo Horizonte inaugurará as duas primeiras estátuas de pessoas negras. São elas a Antropóloga e militante do movimento negro unificado Lélia Gonzales e a escritora Carolina Maria de Jesus. Parece estranho que com tantos nomes de pessoas negras grandiosas de diversas áreas essas sejam as primeiras a serem homenageadas na capital mineira. Foi esse estranhamento que me deu força e astúcia para idealizar e propor essa homenagem a essas duas mulheres pretas conhecidas mundo a fora.

Quase todo mundo sabe que a gente que é de Minas gosta de contar um caso e é esse caso das estátuas que quero contar hoje. Já tinha um bom tempo que eu andava sem sossego pensando como que eu iria fazer para concretizar esse sonho quase utópico de ter uma estátua de pessoa negra na minha cidade natal. Dividi essa ideia com algumas pessoas que poderiam colaborar, mas elas não toparam. Até que em janeiro de 2023 precisei me mudar para o Rio de Janeiro para fazer o doutorado na UFRJ e pedi para Jozeli Rosa para me ajudar trazendo meus pertences pessoais em seu carro. Ela gentilmente me trouxe de BH até ao Rio sem me cobrar absolutamente nada, nem o combustível. Um carinho e um incentivo que nos dias de hoje só uma preta que conhece bem o corre de outra preta para fazer.

Nessas quase seis horas conversamos sobre muitas coisas e dividi com ela o projeto inédito das estátuas. Ela me olhou um pouco desconfiada e logo topou fazer parte da ideia e já começamos a sonhar juntas. Jozeli Rosa é uma mulher preta, graduada em direito, filha de nanã que atua em diversas áreas, dentre elas no parlamento mineiro como Chefe de Gabinete da deputada Bella Gonçalves. Ela convenceu a deputada destinar mais de quatrocentos mil reais via emenda parlamentar para esse projeto. Ela negociou com a Secretaria de Cultura do Município de Belo Horizonte e conseguiu garantir quase tudo que eu propus. As duas homenageadas, Lélia e Carolina e a localização, dentro do parque municipal bem em frente ao Teatro Francisco Nunes.

Uma proposta decolonial em uma cidade que definitivamente não é um espaço neutro, mas um campo de batalhas ideológicas, políticas e econômicas. Aqui é importante deixar em negrito que não foi e não é um ato falho chegarmos em 2024 e termos uma capital ornamentada somente por estátuas de pessoas brancas. Foi e é proposital esse projeto colonial. Essa matriz de poder que produz hierarquias raciais e de gênero nos níveis local e global, operando junto com o capital para manter um regime moderno de exploração e dominação. As estátuas, as efígies e os monumentos coloniais desempenham precisamente a função de armadilha.

Estátuas são muito mais que objetos elaborados em mármore, granito, bronze, cobre e aço. Enquanto objeto constituem uma reflexão aparentemente muda, mas representam os mortos, mortos sujeitos que merecem serem lembrados e celebrados. Não existe nenhuma estátua sem esse objetivo de memorizar na história a importância de quem é retratado. Essas estátuas em sua maioria de homens brancos e de algumas mulheres brancas firmam uma forma de poder e dominação.

É em prol de celebrar e honrar a memória das nossas mais velhas as grandiosas Carolina e Lélia que sigo caminhando com a consciência constante e contínua de um aprendizado que tive no movimento de mulheres negras: “nossos passos vêm de longe”. Viva Lélia Gonzalez, viva Carolina Maria de Jesus.


Etiene Martins

É mineira da cidade de Belo Horizonte. Militante do movimento de mulheres negras, jornalista, doutoranda e mestre em comunicação e Cultura pela UFRJ – pesquisadora das relações raciais e de gênero cursando o mestrado em Relações Étnico Raciais no CEFET-RJ.


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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