O direito a estética não é um atributo irrelevante nos debates sobre o exercício da cidadania. A estética do corpo transmite uma linguagem que comunica os códigos culturais, políticos, sociais, históricos, religiosos e econômicos e no qual o corpo está submetido e marcado pelos processos que o modulam nos sistemas sociais.
É neste quadro de relevância que se enquadra o trabalho, o exercício político-imaginário das trancistas e trançadeiras afro. Trancistas são aquelas pessoas que imaginam outras possibilidades de leveza, de beleza, de relações de contato, de manipulação da aparência crespa mediante a uma sociedade calcada na cultura do extermínio dos corpos negros, baseada ainda em racismo científico, estruturada em padrões coloniais de relação e execução das obrigações do Estado.
A pessoa trancista é aquela que segue na dinâmica de manutenção da cultura negra (afrodiaspórica). Ao entrelaçar os cabelos, cada mecha afro, entrelaçam histórias transatlânticas, entrelaçam técnicas do corpo que têm um longo histórico no continente Mãe. Nesta arte de tramar estilos, elas seguem nos mostrando que nossa história não começou na diáspora (este evento de dispersão forçada e que cotidianamente nos marca com dores e alegrias). É preciso repetir e exigir que nossa história seja contada não somente nos espaços quilombistas (Nascimento, 1980), os terreiros e as escolas de samba, é preciso fazer valer a Lei federal de História e Cultura Africana e Afro-brasileira na Educação Básica (Lei 10.639/2003).
Trançar cabelos é reconectar o corpo negro, o corpo afrodiaspórico, a uma memória ancestral, é contribuir num processo de autoestima, autoafirmação e construção da identidade.
A data 06 de junho não foi escolhida ao acaso para comemorar essa ocupação da beleza, da política da imagem, no dia 06 de junho nasceu a cabeleireira-trançadeira, Idalice Moreira Bastos, a Afro Dai (Lucinda, 2004). Sem dúvidas, Afro Dai tornou-se uma figura pública pela natureza de sua trajetória, pela altivez em que posicionada seu corpo, sua cabeça, sua história, pelo orgulho negro construindo ao longo de sua participação nos movimentos políticos e culturais negros da cidade do Rio de Janeiro.
Afro Dai é uma das responsáveis pelo resguardo patrimonial da arte do trançado, foi uma transmissora desse saber-fazer, formou diversas mulheres para serem disseminadoras desse estilo de vida, pois ser trancista ou trançadeira é uma proposta de olhar o corpo, a cultura, a nossa história pelas lentes que não são disponibilizadas nos espaços de educação formal (a escola e universidade).
Ao ensinar a “fazer as cabeças” das pessoas negras, ensina-se também o autoamor, a autopercepção e a autopreservação. Por esses motivos que no estado do Rio de Janeiro, quem abrilhanta o dia da trancista é a persona Afro Dai.
Contudo, é preciso lembrar que trançar é luta, é superar obstáculos como a falta de reconhecimento da ocupação como profissão pelos órgãos oficiais do Estado. Trançar é sempre ser desafiada em ofertar um serviço que por diversos momentos será rechaçado, discriminado e, sobretudo, submetido as lentes do que tem sido caracterizado como racismo estético (Xavier, 2020; Santos, 2022). É saber que seus clientes poderão ser conduzidos no mercado de trabalho a se desfazerem das tranças, da identidade cultural.
O dia 06 de junho é o dia de comemorar o trabalho das pessoas trancista, mas é também dia de luta por direitos, por buscar a cidadania plena.
Luane Bento dos Santos é Doutora em Ciências Sociais (PUC-Rio). Pesquisadora de Relações Étnico-raciais.
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