Este texto tem por objetivo evidenciar D. Laudelina de Campos Melo como uma referência histórica que nos ajuda a refletir sobre o passado e o presente do trabalho doméstico no Brasil, sobretudo a partir da década de 1930. Recobrar sua experiência de vida é destacar a importância de sua figura dentro da historiografia brasileira, especialmente neste ano de 2024, em que se rememora os 120 anos do nascimento de Laudelina de Campos Melo. Em homenagem a essa data simbólica, trago um pouco da trajetória e da história dessa trabalhadora doméstica negra em luta por direitos trabalhistas em meio ao contexto amplo do pós-abolição. No dia 25 de julho de 2023, ela teve seu nome inscrito no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria pela Lei n.º 14.635.
Nascida em 1904, na cidade de Poços de Caldas, Minas Gerais, Laudelina de Campos Melo começou a trabalhar como empregada doméstica remunerada aos 16 anos. Mas desde os 7 anos, aproximadamente, a pequena Nina já auxiliava nas funções de cuidado da casa enquanto sua mãe trabalhava como lavadeira. Com 18 anos, em 1922, mudou-se para São Paulo, onde trabalhou como empregada doméstica até aproximadamente 1924, quando se casou e foi morar na cidade de Santos. Lá, continuou a desempenhar a mesma profissão até 1934, quando retornou para São Paulo, retomando a função como trabalhadora doméstica até 1940.
O contexto de seu nascimento é marcado por uma política demarcada pelas alianças e interesses da classe dominante em torno de um projeto de Brasil moderno, sem abrir mão do tradicional. O coronelismo, o voto de cabresto, a política dos governadores e a valorização do café foram as principais características da dominação político-econômica das oligarquias rurais sobre o país na Primeira República. São esses fios da história política do Brasil que se enredam com a vida de Laudelina Melo e sua atuação em prol do mundo do trabalho doméstico.
Importa destacar que utilizo, no texto, como fonte principal de minha reflexão, a entrevista concedida por Laudelina de Campos Melo à Elisabete Aparecida Pinto, a partir de outubro de 1989, a qual foi transcrita na sua dissertação de mestrado. Esta, por sua vez, tornou-se livro em 2015. Em 1987, ao ingressar no mestrado na UNICAMP, Elisabete Pinto reorientou seu tema de pesquisa após uma conversa com Clóvis Moura, o qual lhe deu uma delicada, sábia e generosa resposta: “Não seja boba. Eu e Abdias já temos registros. Já registramos nosso pensamento. Escreva sobre D. Laudelina”. E assim seguiu, escrevendo somente sobre Laudelina de Campos Melo. Foram dois anos de escuta; quase oitenta finais de semana que passaram juntas – ela e D. Laudelina – para tentar finalizar uma história que nunca se encerrava, como não se encerrou.
Junto dessa entrevista, a documentação analisada sobre D. Laudelina de Campos Melo permitiu redimensionar a abrangência de sua articulação social e política. As cartas, memorandos recebidos de órgãos oficiais, documentos internos da Associação e Sindicato das Trabalhadoras Domésticas, participação em congressos, fotografias antigas, outras entrevistas etc. representam uma base histórica fundamental que revela o real e concreto de sua atuação e agência.
Logo, dar evidência à biografia de D. Laudelina Melo é uma importante oportunidade para o campo da História Social do Trabalho continuar uma crescente de pesquisas e estudos voltados à análise de como mulheres negras, especialmente as trabalhadoras domésticas, são retratadas na historiografia brasileira. Isso tensiona um conjunto de representações que, muitas das vezes, retrata essas mulheres na forma de mitos e idealizações estereotipadas, distorcendo os contextos reais de suas condições de vida e de trabalho.
Do imediato pós-abolição aos dias atuais, mulheres negras como trabalhadoras domésticas estiveram engajadas a (re)pensar suas condições de trabalho, e de vida. Isso as levou a exigir do Estado, e de sua legislação, direitos trabalhistas iguais enquanto trabalhadoras. Para isso, elas se organizaram em associações e sindicatos na busca de melhores condições de trabalho. Em 2023, completou-se uma década da aprovação da Emenda Constitucional n.º 72/2013, que modificou a Constituição Federal de 1988 para equiparar os direitos trabalhistas. Esse percurso foi permeado de debates, embates e tensões entre o Estado e as trabalhadoras, o que constitui ainda hoje uma recorrente dinâmica da relação capital-trabalho no pós-abolição. Logo, evidenciar a contribuição destas trabalhadoras na busca por cidadania e direitos é um compromisso com a memória e a história de nossa gente no Brasil.
D. Laudelina de Campos Melo, entre as décadas de 1930 e 1990, foi uma mulher orgânica que articulou e mobilizou ações e intervenções em busca de direitos e melhores condições de trabalho para as trabalhadoras domésticas. Seu pensamento e postura de reação frente à divisão sócio-racial do trabalho foi sua ferramenta de luta por quase sete décadas, desde fins da Primeira República até a Nova República. Sua atuação política foi marcada pelas relações com militantes negros, comunistas e sindicalistas, bem como o contato e a interlocução com várias organizações políticas distintas como a Frente Negra Brasileira, o Partido Comunista e o Teatro Experimental do Negro.
Entre 1924 e 1928, ela e o marido participaram do grupo “Saudades de Campinas”. Ela como oradora oficial e ele como secretário. “O Saudade de Campinas”, em suas palavras, “era só lazer e cultura e tinha um espaço mais negro; naquela época, eles (os brancos) eram muito racistas e não queriam se misturar”. No período de 1928-1934, D. Laudelina participou também de atividades recreativas e de lazer do clube “Paulistano da Glória”, uma organização política de cozinheiras articulada por D. Augusta Geralda, mãe de Geraldo Filme. As festas no “Paulistano da Glória”, além do lazer e diversão, tinham a finalidade de congregar as cozinheiras com o objetivo de organizar um sindicato. Sobre as festas, dizia Laudelina: “eu trabalhava e também me divertia com meu marido, nas quinta-feiras, nós íamos no Paulistano ou, em outro aí perto da Igreja do Carmo”.
Em 08 de julho de 1936, D. Laudelina fundou, em Santos, a Associação Beneficiente das Domésticas de Santos, com objetivo de reivindicar a garantia de direitos voltados à proteção e assistência das trabalhadoras domésticas. Sua luta pelo reconhecimento dessas trabalhadoras nos debates da legislação trabalhista foi incansável. A Associação de Santos funcionou por pouco tempo, sendo fechada em 1937 pelo Estado Novo. Mas foi reaberta em 1946. Sobre a reabertura, disse Laudelina: “Então, em 1946, o Getúlio reabriu os Sindicatos (direito à sindicalização) e aí a Associação também foi reaberta, começou a funcionar tudo de novo. Na fase de reorganização começamos trabalhando para os necessitados, procurando encaminhar as domésticas no serviço, tinha uma agência de colocação, tinha um curso de alfabetização […] Tinha o departamento médico (…) tinha dentista […] tinha o departamento beneficente, nós fornecíamos roupas, alimentos e remédios”.
Uma mulher de seu tempo, que organizou muitas ações recreativas e educativas voltadas para a afirmação do povo negro. E articulou diversas frentes de mobilização para reivindicar melhores condições de vida e de trabalho. Essas frentes foram referenciadas nas associações, nos clubes e na própria imprensa negra, movimentos responsáveis por comunicar socialmente os anseios e a busca da população negra por uma vida digna, com direitos e integrada à sociedade brasileira.
Em 1953, iniciou seus trabalhos junto ao “Clube Cultural Recreativo”, organização negra da qual fez parte da diretoria e, posteriormente, passou a organizar atividades como bailes e concursos de beleza negra, como o Pérola Negra. Fundou em 1955 a Escola de Bailados Santa Efigênia para Negros, que tinha como função transmitir os conhecimentos formais de dança e música, mas também era espaço de lazer e socialização de conhecimentos de maneira informal. Já no ano de 1963, juntamente com Bráulio Mendes Nogueira – quem ela conheceu na fundação do Teatro Experimental do Negro, em Campinas –, José Alberto e Mário de Oliveira, Laudelina idealizou o I Salão Campineiro dos Amigos das Belas Artes. Este evento, de acordo com ela, era dedicado à “exposição de valores negros”.
Em 1954, foi eleita por unanimidade para o cargo de presidente do Departamento Feminino, do comitê Pró-Adhemar de Barros. Entre 1954 e 1955, montou uma pensão e começou a vender salgados no campo do Guarani e, posteriormente, no campo da Ponte Preta, clubes de futebol de Campinas. No final de 1959 e inícios dos anos 1960, D. Laudelina e outras três trabalhadoras domésticas iniciaram um trabalho de mobilização através de anúncios no rádio, jornais e através da solidariedade de alguns sindicatos.
Em maio de 1961, ela fundou a Associação dos Empregados Domésticos de Campinas. Sobre esse momento, disse D. Laudelina, “tinha mil e quinhentos empregados domésticos neste dia transitando pela Barão de Jaguará. Aquilo abalou Campinas […] alarmou jornais e fotógrafos”. De 1964 a 1968, com a instauração da ditadura Militar no Brasil, a Associação dos Empregados Domésticos de Campinas “não foi cassada, mas passou por um processo agudo de desmobilização de suas ações reivindicatórias. Após 1968, foi autorizada a funcionar como uma associação de caráter beneficiente. Nesse período não foi realizado nenhum evento e nem reivindicamos nada”.
Já em 1967, D. Laudelina teve a oportunidade de falar com o então Ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, solicitando a regulamentação da profissão e o direito de sindicalização das trabalhadoras domésticas. Foi chamada por ele de o “terror das patroas”. Sobre o episódio, ela contou: “Em virtude da postura do ministro, nós entramos em contato com os outros estados, com os outros municípios, onde já tinha (realizado) outros congressos, onde já tinha outras Associações e (trabalhamos) para a fundação de mais Associações (…) A igreja ajudou muito a gente, ia atrás das Associações, (por meio) do pessoal de igreja (que) entrava em contato com as entidades sindicais dos locais (…) pedindo apoio. Então a gente tinha uma massa consistente para poder brigar”.
Essa fala do ministro está relacionada à atuação de Laudelina Melo por garantia de direitos e justiça social junto à causa trabalhista. Desde muito jovem ela se engajou no combate ao racismo e às injustiças sociais. A Associação Beneficente dos/as Empregados/as Domésticos/as na cidade de Santos (1936) promoveu atividades educativas e de afirmação étnica da população negra. Enquanto associação, pretendeu se constituir em uma rede de solidariedade entre as domésticas – categoria formada por um número elevado de mulheres negras. E diante da precarização e desvalorização de seu trabalho e na ausência de ampla garantia de direitos, elas buscaram apoio e escuta nessas associações de trabalhadoras.
A luta pelo reconhecimento e valorização das trabalhadoras domésticas como sujeitas de direitos atravessa a História do Brasil e é um elemento dinamizador nos mundos do trabalho do pós-abolição. As estratégias de articulação e mobilização, as relações com a política institucional e as respostas recebidas são reveladoras do caráter desigual e autocrático dos projetos políticos levados a cabo nos diferentes períodos dessa História. Assim, ao ler sobre Laudelina de Campos Melo, podemos nos perguntar o que sua trajetória de vida tem a ver com as nossas histórias, com as histórias de nossas mães e de nossas avós? Ou sua relação com a dita História do Brasil?
A resposta a essas questões tem a ver com a construção do lugar dessas mulheres como trabalhadoras. São histórias que se entrelaçam de distintas formas e que compõem o processo de formação social do Brasil. Assim como D. Laudelina Melo, Maria Sydnea Pereira, minha mãe, começou a trabalhar aos 7 anos como dama de companhia da criança que viria a ser, mais tarde, a sua patroa durante 30 anos, período em que trabalhou sem nenhum direito trabalhista assegurado.
No processo de construção de consciência histórica, que faça enxergar tais atravessamentos na realidade atual, evidenciar a trajetória das mulheres negras trabalhadoras, dentro da Educação Básica, é fundamental para um olhar mais abrangente e crítico da nossa história. Por isso, a importância de trazer no currículo e nos conteúdos escolares uma história que visibilize relações e ações de resistência, mobilizadas para garantir direitos e melhores condições de vida.
E trazer a participação engajada dessas mulheres para a sala de aula, que buscavam transformar seus contextos a partir da produção cotidiana de conhecimentos, revela-se enquanto estratégia para trabalhar as relações de classe, gênero e raça, fomentando reflexões críticas que estimulem os/as estudantes a pensarem as dinâmicas estruturais da nossa sociedade. Dinâmicas essas que, por um lado, negaram direitos trabalhistas e, de outro, provocaram diferentes sujeitas/os históricas/os a se engajar em lutas sociopolíticas, coletivas e individuais, voltadas à resistência e à busca de caminhos e possibilidades de construção de um futuro equânime em direitos. Legados que vem de longe.
Assista ao vídeo da historiadora Bergman de Paula Pereira no Acervo Cultne sobre este artigo:
O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):
Ensino Fundamental: EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados); EF09HI09 (9º ano: Relacionar as conquistas de direitos políticos, sociais e civis à atuação de movimentos sociais); EF09HI04 (9º ano: Discutir a importância da participação da população negra na formação econômica, política e social do Brasil).
Ensino Médio: EM13CHS401 (Identificar e analisar as relações entre sujeitos, grupos e classes sociais diante das transformações técnicas, tecnológicas e informacionais e das novas formas de trabalho ao longo do tempo, em diferentes espaços e contextos); EM13CHS502 (Analisar situações da vida cotidiana, estilos de vida, valores, condutas etc., desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade, preconceito, intolerância e discriminação, e identificar ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às liberdades individuais).
Bergman de Paula Pereira
Historiadora e mestra em Ciência Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC);
E-mail: [email protected]
Instagram: @kilombagem
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