De traficados a traficantes, a população negra é a maior vítima da guerra às drogas – Entrevista com Deise Benedito

Deise Benedito é advogada, especialista em relações étnico raciais e gênero e atualmente é Perita do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura do Ministério da Justiça. 

no Iniciativa Negra

Deise tem uma longa trajetória no Movimento Negro, notadamente no feminismo negro onde fundou o Geledés – Instituto da Mulher Negra e presidiu a Fala Preta – Organização de Mulheres negras, além de atuar no campo dos Direitos Humanos, onde se especializou em Política Criminal e Penitenciária. 

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Deise é referência nacional nestes temas, com participações em seminários, congressos e conferências, tanto nacionais como internacionais e conversou com a Iniciativa Negra sobre a tortura no sistema penitenciário brasileiro e como a sua prática é usada como um perverso mecanismo de controle da população carcerária como elemento complementar da “Guerra às Drogas”.

 

O que é Tortura para você Como você a define?

A prática da tortura sempre foi frequentemente utilizada na sociedade  brasileira, introduzida no período da colonização através de tratamentos cruéis e sevícias praticadas contra os povos indígenas, seguidos de sessões de espancamentos sendo amplamente utilizada contra a população africana no Brasil na condição de escravos, como forma de obtenção de informações sobre fugas de escravos, bem com formas de obter também a subordinação, a disciplina dos corpos dos escravizados, servindo como exemplo a outros corpos africanos que se insubordinassem ao julgo do escravismo e dos maus tratos.

A tortura, na minha opinião, é uma  forma mais cruel de tratamentos aplicado ao ser humano, cujo o objetivo é a humilhação em caráter individual em um espaço isolado  ou mesmo público, a despersonalização da sua integridade física moral, afetando o seu estado emocional  reduzindo a pessoa à condição de um bestializado.

Como a tortura é tipificada dentro da norma jurídica?

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O Estado Brasileiro ergueu-se sob a égide da o uso desmedido da força de forma violenta contra a população indígena e africana durante o período colonial e a escravidão no Brasil.  A prática do uso da força por agentes do estado sempre foi uma constante, ganhando as paginas dos jornais durante o período da ditadura militar, onde a tortura e os maus tratos ganharam ainda mais dimensões dentro da lógica de repressão.

Com o advento da Constituição Federal de 1988, no texto do art. 5°, inc. XLIII, prescreveu que são inafiançáveis e insusceptíveis de graça e anistia os crimes de tráfico de drogas, terrorismo e os considerados hediondos. Trata-se de uma norma programática. Era necessária a elaboração de lei especial para definir crime hediondo, o que foi feito na lei 8.072/90,  onde a pratica da Tortura foi considerada crime hediondo, porém, ainda não havia uma figura penal definindo a tortura.

Assim sendo, a partir de uma extensa e árdua mobilização da sociedade civil, através da participação nas conferencias estaduais e nacionais de Direitos Humanos,  o ano de 1996 é marcado pelas denuncias da  pratica de Tortura por agentes do Estado. Tal articulação permitiu que passasse a vigorar em 1997 edição da lei nº 9.455/1997, Lei Contra a Tortura com o objetivo de intimidar a pratica da Tortura no Brasil.

Isso só ocorreu em 1997 (diga-se de passagem, nove anos após a promulgação da Constituição), na lei 9.455. Porém a Lei Contra a Tortura não impede que a mesma seja praticada, haja visto as denuncias de torturas no ambiente institucional tais como nos locais de privação de liberdade, tais como presídios, manicômios, asilos etc. Numa visão individualizada dos vários crimes contra a pessoa, pode-se afirmar que a pratica da tortura é a que mais traz desconforto e repugnância à sociedade.

O que e quem é o publico-alvo dos Espaços de Privação de Liberdade?

O público-alvo em espaços de privação de liberdade, são as pesspas que estão sob custódia do Estado, são adolescentes em cumprimento de medidas sócio-educativas, homens em mulheres em estabelecimentos prisionais, manicômios, instituições psiquiátricas, asilos e abrigos, toda a liberdade que está sob uma decisão judicial ou administrativa. Há sempre que se notar que a grande maioria deste público-alvo é constituída por negros e indígenas.

Existe uma Cultura Institucionalizada da Tortura no Brasil?

Sim, cabe a destacar  que  durante o período da colonização e o período do escravismo,  inúmeros instrumentos foram amplamente utilizados para  a obtenção da subordinação e disciplinamento dos africanos e africanas aqui escravizados, cabendo destacar que tais,  mecanismo de tortura, tinham como objetivo também a intimidação dos insurretos escravos bem como também tinha como objetivo a subordinação à então “Ordenações Filipinas’, ordenamento jurídico este que prevaleceu no Brasil, durante todo o período da Escravidão.

Cabe também destacar que entre a utilização de instrumentos de tortura, para além da utilização do ferro em brasa,  com as iniciais do proprietário do escravo. Também, foram amplamente utilizados, a chibata, tronco, bem como a amputação de membros de escravos bem como o esquartejamento, um castigo medieval  amplamente utilizado no período medieval, que consistia em amarrar os membros da vitima junto a um cavalo e disparar em direções contraria provocando o desmembramento dos membros.

Outro instrumento utilizado era a mascara de Flandres, criada no século 15, utilizada  como reprimenda contra escravos e escravas, este instrumento tornou-se popularizado uma vez que  foi utilizado pela Escrava Anastácia. Outros instrumentos de tortura, foram a utilização de ferros presos aos pescoços, pes  e o  famoso pau de arara. Tais praticas, tinham o objeto de provocarem intenso sofrimento físico em suas vítimas.

O uso de instrumentos voltados para castigar os escravos ou mesmo as pessoas que se insurgiam, foram ao longo do tempo amplamente substituídos por outros instrumentos, principalmente por agentes do Estado, na repressão à criminalidade, através da intimidação e uso da força de forma extrema  com advento da Luz, choques elétricos, sacos plásticos e contra as mulheres o estrupro!

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A habitualidade no uso de instrumentos de tortura ao longo de anos por agentes do estado, incorporou-se na metodologia a ser aplicada para obtenção de delações no período da Ditadura Militar, estendendo-se até a atualidade onde  destaca se  a influencia dos EUA na formação de Agentes do Estado Brasileiro na utilização de métodos invoadores de Tortura . Neste sentido a pratica da tortura é uma cultura institucionalizada, mesmo hoje sendo utilizada através de outros métodos como eletrochoques, sacos plásticos, negligencia por parte de agentes do Estado, em locais de privação de liberdade. A tortura institucionalizada no Brasil, traz no seu bojo, a certeza da impunidade por parte dos seus algozes. Neste sentido também cabe ressaltar, o uso do corpo como um instrumento de dor.

O que você considera Maus Tratos e Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes?

Bem, segundo a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes, maus tratos e tratamentos cruéis desumanos e degradantes são assim descritos:

Art. 1º. O termo tortura designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam conseqüência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.

Já o tratamento degradante,  se dá quando há humilhação diante de outras pessoas, que faz com que a pessoa seja, obrigatoriamente, levada a agir contra a sua própria vontade em condições de subordinação. O tratamento desumano, provoca grande sofrimento físico e mental, ou físico,  impondo muitas vezes esforços à vítima que vão além de seus limites, neste caso é possível citar como exemplo as condições que os africanos durante a escravidão eram submetidos a jornadas extremas de trabalho, ou mesmo às condições que  pessoas em privação de liberdade têm hoje, sobrevivendo em condições sub-humanas tais como em celas superlotadas, ou totalmente em locais sem areação, higiene necessária, alimentação compatível, condições dignas de habitabilidade ou convivência digna.

Como se convive com a Pratica da Tortura em Presídios, Cadeias Publicas, Superlotação…?

Por incrível que possa parecer o convívio com a prática da tortura é naturalizado, entre agentes e presos e presas, está incutida dentro da esfera da estrutura do processo de confinamento,  muitas vezes perpetuadas por agentes do estado, outras vezes por sócio-educadores do sistema sócio-educativo quando não praticada entre os próprios internos.

Estamos vivendo o suplicio do Hiperencarceramento Brasil,  conta com uma população de 579.781 pessoas custodiadas no Sistema Penitenciário, sendo 37.380 mulheres e 542.401 homens, segundo os dados do Infopen, 56% dos presos no Brasil,  são jovens, entre 18 e 29 anos, estes sabemos que representam 56% da população prisional segundo ainda os dados do Depen, dois em cada 3 presos no Brasil são negros isto é 67% do total da população prisional, e 53% possuem apenas o ensino fundamental incompleto.

Em caso particular  a situação das mulheres negras é alarmante,  foi constatado que entre  anos de 2000 até 2014  o numero de mulheres na prisão apresentou um crescimento de 567,4 segundo os dados do Infopen Mulheres, do ano de 2015.

Eu destaco que 30% das mulheres presas não possuem condenação. Na sua maioria negras, jovens, com educação básica (ensino fundamental e médio) incompleto são mães na sua maioria são  responsáveis pelo sustento familiar.

Quais as suas observações sobre a prática de tratamento cruel e degradante para população negra, mulheres e jovens  em locais de privação de liberdade como a prisão  e no sistema sócio educativo?

Ao pé da letra, as condições em que jovens  africanos foram aprisionados e transportados nos navios negreiros, podemos categorizar como tratamentos cruéis desumanos e degradantes. Ao trazermos tais condições para a nossa realidade, diante do grau de desumanização aplicado aos africanos e africanas na condição de escravos para serem amplamente comercializados, também, é possível revisitar rapidamente a historia da escravização no Brasil, e em alguns casos, observar que não era a regra.

Alguns senhores de escravos tinham um extremo cuidado com suas “peças” ou sua escravaria evitando, castigos cruéis que pudessem danificar suas “peças” uma vez que um grande investimento foi efetuado para sua aquisição  e evitar o prejuízo.  Por outro lado, o que determinava o sucesso na obtenção da disciplina e subordinação da escravaria  era exatamente o uso da  força, aliado a humilhações publicas e castigos violentos e a pratica de tortura extrema, e condições degradantes de sobrevivência. Nestes casos era usado o Ordenamento Jurídico intitulado Ordenações Filipinas que, em seu Livro V, determinava o número de chibatadas que o escravo insurgente receberia.

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Trazendo para a realidade da população negra, sempre afirmo que mesmo com a “Abolição da  Escravatura”  a população negra, mesmo passado mais de 120 anos, tem ainda sobre suas cabeças a “Mão do Capataz” travestido de República, Estado  Democrático de Direito, onde não são salvaguardados  direitos ou mesmo garantias para esta população  que vive na esfera da Periferia Constitucional,  tendo como agravante o fato de ser ainda vista como “ inferior”, despossuída de direitos e garantias previstas na Constituição.

Eu quero destacar aqui, no que se refere a pratica de tratamento cruel desumano e degradante, principalmente os jovens negros do sexo masculino, sempre foram preferencialmente vitimas das abordagens truculentas do aparato policial, seja ele civil ou militar no que se refere à Segurança Pública, as humilhações públicas nas abordagens, durante a condução nos casos “prisão preventiva” as prisões sempre arbitrárias apontam para a condução até a autoridade responsável,  é seguida por um ritual de espancamentos e xingamentos quando não, são expostos nos programas de telejornalismo sensacionalista para aumento de lucros das emissoras atráves do aumento de patrocinadores, ampliando os custos e reforçando estereótipos de potenciais delinquentes.

Como você vê a população negra em privação de liberdade na condição de dependente química?

Bem, no meu ponto de vista, eu posso destacar que o alcoolismo sempre foi um dos principais problemas da população negra, com traumas terríveis em inúmeros lares,  por ser uma “droga” barata  e de fácil aquisição, depois as chamadas psicoativas, onde posso elencar a maconha, amplamente também utilizada por escravos de angola, conhecida como Djamba. E, ao entrarmos no uso das anfetaminas, nesta destaco a cocaína, uma droga  viciante, e o crack, um dos problemas maiores dos grandes centros urbanos.  O uso das drogas, tem sido considerado uma das causas da violência. Porém se observamos a situação da população dependente química, em privação de liberdade, na maioria das vezes necessita de tratamento adequado, participação da família, profissionais qualificados, e não internação e ser visto como um “caso de Polícia”.

A relação estabelecida com a população negra  é sempre o da garantia da segurança pública não sendo tratado  como um problema de (saúde pública) .Devo salientar a questão da “Guerra às Drogas”. Em  1971, o então Presidente dos EUA, Richard Nixon, fez um discurso considerado histórico onde declarou: “As drogas são nosso inimigo público numero um”  A partir deste discurso, o modelo intitulado de “Guerra às Drogas” foi amplamente difundido em todo mundo, vendedores de plantas, ou mesmo compostos químicos começaram a ser tratados como “terroristas” e uma ameaça à segurança e à saúde públicas, sendo enquadrados os consumidores e portadores.  A tal guerra continua, e deixa um cenário desolador principalmente para a população negra, tanto na condição de usuária ou mesmo na condição de “traficante”.

De  Mercadoria no Trafico Transatlantico de Escravos à condição de “traficantes”, e de dependentes químicos, é possível  observar, que a população negra e jovem,  foi a mais atingida,  no que se refere à violência perpetrada pela “guerra as drogas”, que vai da ação dos agentes públicos há guerras entre as faccões para o domínio do comercio de drogas nos territórios das grandes cidades. Enfatizo sempre que o Genocídio da Juventude Negra se iniciou no momento do aprisionamento destes  jovens na Africa, ganhando novas formatações, num processo que vai desde o abandono no pós abolição,  e se estende aos dias de hoje,  no que se refere às politicas publicas eficazes para sua inclusão social visando o fim das desigualdades provocadas pelo racismo e a discriminação,  realizada culminando no encarceramento em massa.

O Genocídio da Juventude Negra, não se dá apenas pelas guerras entre descendentes de traficados, atualmente na condição de traficantes, destaco ( Pequenos Traficantes) ou melhor os (terceirizados no tráfico)  mas  deve-se levar em conta o impacto das morte na vida de inúmeras famílias negras, quando não mortos pelos agentes do Estado mortos  pelo uso abusivo de drogas.  Destaco a sina das mães, irmãs, filhos e as jovens viúvas,   que  repetiram a triste trajetória de suas tetravós em criar os filhos sozinhas,  continuando a ser o arrimo de família e estarem expostas a violência, vivendo em situação de vulnerabilidade extrema,  na mira das  facções, dos desafetos de seus ex companheiros mortos na “Guerra às drogas”.

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