A sub-secretária-geral das Nações Unidas e Assessora Especial para Prevenção do Genocídio, Alice Wairimu Nderitu, apresentou nesta sexta-feira as observações preliminares da visita de 11 dias realizada no Brasil, onde esteve pela primeira vez.
Durante a missão, ela se reuniu com altos funcionários e representantes do governo, representantes de organizações da sociedade civil e representantes de comunidades indígenas e minorias em todo o país, assim como membros da comunidade internacional. A missão foi realizada após convite do governo brasileiro.
Leia, a seguir, a declaração de Alice Wairimu Nderitu:
Esta é a minha primeira visita oficial ao Brasil, realizada de 1 a 12 de maio de 2023. Primeiramente, estendo meu agradecimento ao governo Brasileiro.
Devo ser clara sobre o principal objetivo desta visita. Estou no Brasil a convite do governo brasileiro. Isso é esperado, considerando que tenho um mandato global e visito vários outros países também. O propósito da minha visita foi realizar consultas a oficiais sêniores do governo, colegas da equipe de país das Nações Unidas, representantes da sociedade civil, líderes comunitários e outros atores relevantes sobre ampliar a proteção de povos indígenas, pessoas afro-brasileiras e outros grupos em situação de risco.
Em Brasília, tive reuniões com Ministros e oficiais sêniores dos Ministérios das Relações Exteriores, Igualdade Racial, Direitos Humanos e Cidadania, Povos Indígenas, Mulheres, Esporte, Saúde e Justiça e Segurança Pública, além da Defensoria Pública, Procuradoria Geral da República, Advocacia Geral da União, Conselho Nacional de Direitos Humanos e organizações da sociedade civil.
Também viajei para o estado de Roraima e tive reuniões com autoridades governamentais federais e estaduais, incluindo o governador Antonio Denarium e representantes dos povos indígenas e da sociedade civil em Boa Vista. Visitei o Centro de Saúde Indígena de Boa Vista (CASAI) e testemunhei de perto a situação de extrema precariedade do povo Yanomami, que há décadas sofre abusos e violações. Tive reuniões com as lideranças Yanomami e visitei outros indígenas e outras comunidades da região, que vêm recebendo apoio do governo nacional desde o início deste ano, mas continuam em situação de grande vulnerabilidade.
Também visitei o estado de Mato Grosso do Sul, inclusive o governador Eduardo Riedel, e tive reuniões com autoridades estaduais e sociedade civil em Campo Grande. Visitei a comunidade Guarani Kaiowá no território Guapo’y e outras partes do estado. Conversei com acadêmicos da Universidade de Dourados e fiz uma apresentação sobre formas de aumentar a proteção do povo Guarani Kaiowá e de outros grupos indígenas. Visitei as populações deslocadas Guarani Kaiowá e a comunidade quilombola.
No Rio de Janeiro, realizei consultas com representantes de pessoas afrodescendentes que têm enfrentado graves atos de violência, bem como funcionários do governo e representantes da sociedade civil que representam e promovem os direitos de vários grupos vulneráveis. No Rio me encontrei com o Governador Interino Thiago Pampolha e com o Procurador Regional e participei de um evento organizado pela sociedade civil.
Antes de me aprofundar em um resumo de meus achados, devo esclarecer o papel de meu mandato, o que foi explicado em todos os compromissos que tive aqui no Brasil.
Não estou aqui para caracterizar a natureza dos crimes cometidos ou determinar se o crime de genocídio foi cometido ou não no Brasil.
Somente um tribunal de justiça competente (nacional ou internacional) pode determinar se houve genocídio, crimes de guerra ou crimes contra a humanidade (crimes de atrocidade). Meu mandato é a prevenção do genocídio contra grupos nacionais, étnicos, raciais ou religiosos, comumente referidos como grupos protegidos.
Para desempenhar o papel de monitoramento e alerta precoce, meu Escritório usa o Marco de Análise para Crimes de Atrocidade para analisar os fatores de risco para genocídio e outros crimes de atrocidade e fazer recomendações para prevenir esses crimes. Meu Escritório faz isso levando em consideração quaisquer medidas de mitigação, incluindo o compromisso do governo de proteger sua população, bem como políticas e marcos legais existentes e apoio internacional – inclusive das Nações Unidas e órgãos regionais – para apoiar o governo a cumprir essa responsabilidade principal para evitar crimes de atrocidade. Além disso, como ponto focal de todo o Sistema ONU para a implementação da Estratégia e Plano de Ação da ONU contra o Discurso de Ódio, avaliamos a prevalência do discurso de ódio e trabalhamos com entidades da ONU, governos, sociedade civil, mídia tradicional e novas mídias, incluindo empresas de tecnologia e de redes sociais, e outros atores relevantes para combater e abordar o discurso de ódio, que é um dos fatores de risco para genocídio e outros crimes de atrocidade.
Devo também lembrar que o Brasil ratificou a Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio de 1948 (1952), o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (2002) e diversos tratados e convenções de direitos humanos.
Agora, vou compartilhar um resumo dos achados, com base nas consultas realizadas no país nestas duas semanas.
A situação dos Povos Indígenas
- Quando visitei Roraima, no norte do Brasil, recebi relatos e testemunhos muito preocupantes de abusos e violações cometidos contra os povos indígenas Yanomami. De acordo com a Constituição Brasileira, os territórios indígenas, e neste caso, o território Yanomami, são protegidos da mineração. No entanto, a mineração ilegal nesse território tem afetado as pessoas, levando a violações e abusos generalizados contra os Yanomami. Seus direitos de acesso e uso da terra, saúde e educação foram afetados de forma adversa e negativa.
A invasão do território Yanomami para fins de mineração resultou em assassinatos, incluindo o assassinato de suas lideranças e defensores dos direitos humanos e do meio ambiente, contaminação de águas e terras por mercúrio com sérios impactos à saúde, disseminação de malária e outras doenças e agravamento da desnutrição, especialmente entre crianças. Nesse contexto, também recebi denúncias de estupros de mulheres e meninas, bem como outras formas de violência de gênero.
A vida dos Yanomami depende da floresta onde vivem, dos rios e da biodiversidade do entorno. A destruição das florestas para fins de garimpo impôs condições muito duras a essa população, o que pode configurar um ataque aos Yanomami.
Essa destruição também provocou mudanças climáticas e os rios do território estão secando muito rapidamente. Essa população tem sérias dificuldades em cultivar seus alimentos. Por exemplo, resfriados comuns estão evoluindo rapidamente para pneumonia e matando muitas dessas pessoas, especialmente crianças. As histórias de muitos pais que perderam seus filhos são dolorosas. Nenhum pai e nenhuma mãe deve perder um filho em circunstâncias que poderiam ser evitadas. Os casos de pacientes, por exemplo, nos postos de saúde da CASAI em Roraima, são emblemáticos da dor infligida a essa população indígena. Essa sequência de violações contra os povos Yanomami deve terminar imediatamente.
- O caso dos Guarani Kaiowá não é diferente do caso dos Yanomami e de outros povos indígenas no Brasil. A grande diferença é que as terras da comunidade Guarani Kaiowá não foram demarcadas e têm sido alvo de disputas, principalmente com grandes agricultores, em todo o estado de Mato Grosso do Sul. A maioria dos indígenas foi expulsa de suas terras tradicionais, na maior parte dos casos de forma violenta. Alguns vivem às margens das rodovias em condições degradantes e desumanas, sem bens e serviços básicos, como água potável, alimentação, saúde e educação para os filhos. Eles são discriminados no acesso a serviços básicos. Fiquei chocada com a extrema pobreza deles.
Os violentos ataques contra o povo Guarani Kaiowá são emblemáticos dos muitos casos de uso excessivo da força pelos órgãos de segurança contra civis desarmados, levando a assassinatos, prisões arbitrárias e detenções e impondo graves danos físicos e mentais à população, atentando contra os Artigos da Convenção sobre a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, de 1948.
Enquanto estive no Mato Grosso do Sul, recebi vários relatos e testemunhos do tratamento humilhante e degradante recebido pelos Guarani Kaiowá, o que leva a um intenso aumento de suicídios entre os jovens dessa comunidade. Fiquei pessoalmente comovida com o testemunho de um casal de idosos com 104 e 96 anos. Esse casal passou a vida lutando inutilmente pelo direito à terra no Mato Grosso do Sul. Eles perderam toda a família, filhos, netos e bisnetos nessa luta. A imposição de condições tão miseráveis ao povo Guarani Kaiowá em geral, e a esse casal de idosos em particular, é desumana e degradante. Eles imploraram pela demarcação de suas terras pelo menos antes de morrer. A idade avançada demanda, inclusive, mais urgência na demarcação de terras dessa comunidade no Mato Grosso do Sul e de outras em todo o Brasil.
Agricultores pulverizam pesticidas nocivos em suas plantações, que são inalados pelo povo Guarani Kaiowá, causando sérios problemas de saúde e a morte de crianças. A taxa de mortalidade infantil aumentou significativamente (segundo a OMS). Recebi relatos de assassinatos, mutilações e detenções de líderes comunitários sem qualquer responsabilidade. Essas alegações são sérias e devem ser investigadas.
A redução de orçamento da Fundação dos Povos Indígenas (FUNAI) nos últimos anos limitou e, em alguns casos, prejudicou a capacidade e a habilidade da Fundação de prestar serviços e proteção aos povos indígenas. Essa política deliberada de negar proteção por meios administrativos não é apenas discriminatória, mas uma violação dos direitos humanos universais dos povos indígenas.
Os indígenas também são vítimas do discurso de ódio na sociedade brasileira. O discurso de ódio é perpetrado predominantemente por alguns políticos e amplificado nas redes sociais. Em Boa Vista, vivi em primeira mão o ódio expresso por meio de discursos de ódio dirigidos ao líder do povo indígena Yanomami, à sociedade civil e às Nações Unidas, em local público – eu mesma não fui poupada nesse incidente de ódio, e nenhuma pessoa deve estar sujeita a uma situação como essa.
Os povos indígenas são alvo constante de discursos de ódio que os discriminam, usam como bodes expiatórios e os desumanizam, tornando mais fácil marginalizá-los e atacá-los. Se esse discurso de ódio não for controlado, pode se transformar em incitação à discriminação, hostilidade ou violência, o que é proibido pela lei internacional de direitos humanos, e pode levar a ataques violentos sistemáticos e generalizados contra a população indígena no Brasil.
A situação de pessoas afrodescendentes
Minha missão no Brasil também incluiu atenção à situação de pessoas afrodescendentes neste país. Conheci lideranças de comunidades afrodescendentes e quilombolas em Brasília, Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro. Ouvi as histórias dolorosas de mais de 40 mães de vítimas da violência policial. Elas disseram que todas as vítimas eram afrodescendentes, principalmente jovens. Vi a tristeza nos olhos das mães pela perda de seus amados filhos. Nenhuma mãe deveria passar por isso. É um sofrimento que nunca passa. Os brasileiros afrodescendentes constituem mais de 55% da população, mas o racismo estrutural e a discriminação contra essa população são terríveis. A insegurança e a violência generalizadas em suas comunidades dificultam seu direito à educação e acesso a serviços básicos, com impactos óbvios em sua saúde, nutrição e oportunidades de emprego. O Estado tem falhado em garantir a saúde sexual e reprodutiva de meninas e mulheres negras. Uma mulher que conheci me disse que as mulheres afrodescendentes são vistas como futuras mães de criminosos. No que diz respeito aos direitos das mulheres, a terrível situação das minorias sexuais sujeitas à extrema pobreza e à violência foi trazida ao meu conhecimento.
Nesse contexto, pessoas negras no Brasil são alvo da polícia a pretexto de combater a criminalidade nas comunidades onde vivem. Uma das mães que conheci me disse que não conhece nenhuma política de Estado que trate de seus problemas, apenas balas. O encarceramento de homens negros continua muito alto, chegando a 70% do total de pessoas presas no Brasil. A responsabilização pela morte de pessoas afrodescendentes é quase inexistente.
Em conclusão:
Olhando para os fatores de risco para crimes de genocídio e atrocidades em relação à situação dos povos indígenas, brasileiros afrodescendentes e outros grupos de risco no Brasil, constato com preocupação que há registros de graves violações do direito internacional dos direitos humanos contra esses grupos; situações de instabilidade, principalmente no que se refere ao conflito entre indígenas e fazendeiros; uso excessivo da força pelas agências de segurança, especialmente contra pessoas negras; tensões intergrupais entre comunidades indígenas e outros grupos; e uma série de políticas que facilitaram a discriminação e o abuso desses grupos protegidos com base em sua identidade.
A presença desses fatores de risco para crimes de atrocidade exige medidas urgentes por parte das autoridades, da sociedade civil, da mídia, das Nações Unidas e de outros atores relevantes para corrigir a trajetória.
Antes de concluir, permitam-me fazer algumas recomendações para aumentar a proteção de grupos indígenas, afrodescendentes e outras comunidades em risco no Brasil:
- Agradeço ao governo do Brasil pelo reconhecimento dos desafios que o país enfrenta, especialmente indígenas, afrodescendentes e outros grupos de risco. Aplaudo o governo por criar ministérios muito específicos para Povos Indígenas, Igualdade Racial, Mulheres e Direitos Humanos e Cidadania, de modo a aumentar a proteção dos direitos de brasileiras e brasileiros, especialmente dos grupos protegidos.
- Agradeço também à Equipe de País das Nações Unidas, liderada pela Coordenadora Residente, Silvia Rucks, por apoiar o governo na prestação de assistência vital à população afetada e trabalhar lado a lado com atores relevantes para apoiar o Brasil no avanço dos direitos humanos, assistência humanitária e desenvolvimento.
- O Brasil, signatário da Convenção de Genocídio e de outros tratados de direitos humanos, deve combater a impunidade, principalmente entre as forças de segurança que cometeram graves violações contra indígenas e afrodescendentes brasileiros. Isso deve ser feito de maneira independente e imparcial, com o único objetivo de alcançar justiça para as vítimas, ao mesmo tempo em que promove a coesão nacional.
- O governo deve garantir que as novas medidas de apoio aos povos indígenas, especialmente no território Yanomami, sejam aprimoradas, contínuas e sustentáveis.
- Além de retirar os garimpeiros do território indígena Yanomami, é fundamental que o governo, com o apoio de outros atores, aborde as questões da juventude, principalmente dos grupos protegidos. O Brasil não pode continuar perdendo sua juventude por meio de suicídio, violência, saúde mental e exploração, incluindo exploração sexual.
- Saliento aqui também o papel inestimável que representantes dos meios de comunicação têm na educação, informação, sensibilização e alerta sobre situações de risco de genocídio e crimes atrozes relacionados, contrapondo as narrativas de ódio e segregação com fatos verificados.
- O discurso de ódio pode levar a discriminação, ódio, violência e, em seu extremo, crimes de atrocidade e deve ser abordado em alinhamento aos direitos humanos internacionais. Isso vale especialmente para o discurso de ódio dirigido contra os grupos protegidos que mencionei e outras populações em risco, por exemplo, defensores dos direitos humanos, líderes comunitários, mulheres, entre outros. Meu Escritório está pronto para fornecer apoio técnico ao governo, equipe nacional da ONU e outros atores relevantes no Brasil nesta área.
- O governo deveria examinar as atuais políticas de combate ao crime (drogas), que têm impactado fortemente a população negra. O governo deve investigar vigorosamente todos os incidentes de assassinato e execuções extrajudiciais. Por exemplo, mortes em mãos de policiais classificadas como “atos de resistência à prisão” devem ser integralmente investigadas por órgãos independentes.
- Agradeço ao governo, à Coordenadora Residente da ONU, à Act Alliance e a todos aqueles que contribuíram imensamente para o sucesso da minha visita. Eu sinceramente aprecio seu apoio. Este é o começo de uma longa jornada e continuaremos engajados.
Biografia – Natural do Quênia, Alice Nderitu atuou como membro da Rede de Sindicatos Africanos de Mulheres Africanas na Prevenção e Mediação de Conflitos, da Rede de Mulheres Promotoras da Paz e da Aliança Global de Mulheres Mediadoras. Ela contribuiu para definir o papel das mulheres mediadoras, sendo uma das poucas mulheres signatárias de acordos de paz como mediadora, no Quênia e na Nigéria.
Atuou como comissária da Comissão Nacional de Coesão e Integração no Quênia, criada para responder à crise pós-eleitoral de 2008, mediar conflitos religiosos, étnicos e raciais, combater e abordar o discurso de ódio e promover a coexistência pacífica e harmoniosa. Anteriormente, ela apoiou vários países em todo o mundo na criação de mecanismos que vinculam alertas precoces a respostas precoces em todos os níveis, inclusive nos níveis comunitário e nacional.
Ela recebeu uma bolsa de estudos da Aspen Leadership, é membro do Transitional Justice, aluna do Instituto para Justiça e Reconciliação (África do Sul) e ex-aluna do Global Raphael Lemkin. Amplamente publicada, Alice Nderitu recebeu vários prêmios globais que reconhecem seu compromisso com a transformação pacífica de conflitos e sua abordagem inovadora à mediação. É doutora honorária em Letras Humanas pelo Keene State College, mestre em Estudos de Conflitos Armados e Paz e bacharel em Literatura e Filosofia pela Universidade de Nairóbi.