Quero começar invocando o espírito de denúncia e confronto do pastor batista Martin Luther King Jr. quando, ao ser preso por desobediência civil, se dirige a oito pastores brancos. “Já faz anos agora que ouço dizerem ‘Espere!’. Isso soa aos ouvidos de todos os negros com uma excruciante familiaridade. Esse ‘Espere!’ quase sempre significa ‘Nunca’”, afirmou.
Esse texto é uma convocação a pessoas de todas as cores, raças, etnias e religiões. Afinal, a branquitude que opera dentro das igrejas evangélicas é um reflexo que se estende por todas as estruturas sociais que foram levantadas nesse país.
Nessas últimas semanas, as redes sociais foram inundadas por imagens impactantes da estátua de um dos bandeirantes mais conhecidos da história brasileira sendo queimada.
O Borba Gato foi um dos maiores responsáveis pela expansão do Brasil. Ele caçava povos originários para vendê-los como escravos e suas operações conhecidas como bandeiras lideraram verdadeiros massacres contra negros e indígenas do país. De forma absurda, no país do mito da democracia racial, o Borba Gato se tornou um herói, com direito a uma estátua enorme na maior cidade da América Latina.
Nossas estruturas e referências foram forjadas a partir da escravidão e do genocídio colonial. Essas narrativas constroem um lugar chamado branquitude, segundo Liv Sovik, a partir dos seus marcos civilizatórios.
De acordo com a professora americana da UFRJ, “a branquitude é o milagre de Lázaro”. Ressuscita o europeu marinheiro, colonizador, escravocrata, latifundiário, capitão de indústria, banqueiro, capitalista etc”.
É exatamente por isso que vemos pastores relativizando a pauta racial. A fundação da igreja protestante no Brasil se encontra com a construção de Borba Gato quando falamos de sua cooperação para a estrutura escravocrata. O tronco e a cruz trabalharam juntos durante séculos.
Um dos primeiros grupos de missionários protestantes no Brasil veio da Guerra da Secessão dos EUA. Dessa forma, as missões do Sul derrotadas pela guerra civil americana chegam ao nosso país. Prova disso são as cartas como a do missionário Crabtree, de 1859.
Ele enviou para a junta missionária da Convenção Batista do Sul: “O Brasil era como os Estados Unidos. Tem escravos e os missionários enviados pela Convenção Batista do Sul não podiam sentir-se constrangidos a combater a escravatura e assim envolver-se na política do país”.
Ele relata nesse trecho que o sistema escravocrata dos EUA era parecido com o do Brasil, e que os missionários poderiam ficar tranquilos, pois não precisariam se constranger combatendo a escravatura ou se envolvendo na política.
A Igreja Evangélica brasileira foi forjada em sua criação por meio da experiência de missionários extremamente racistas e escravocratas, que defenderam e usaram as estruturas da escravidão para fundar as suas instituições e que continuam sendo consideradas referências de santidade e vistos como homens de Deus.
Por isso vemos casos como o desta semana na Igreja Sara Nossa Terra em Nova Friburgo, no Rio. Uma palestrante branca disse: “para de querer ficar postando coisa de gente preta, de gay, para! Posta a palavra de Deus que transforma vidas. Vira crente, se transforma, se converta!”.
Essa tentativa de querer silenciar os avanços da justiça racial e da diversidade sexual e de gênero nasce a partir da herança colonial. O Jesus apresentado pela palestrante não consegue encarnar nas demandas do povo negro e da comunidade LGBTQIA+. É um Jesus sem corpo, sem cor, sem sexualidade e também sem território.
A branquitude na construção de uma lógica religiosa colonial despolitiza e desterritorializa Jesus. Além disso, transforma o ato de se converter no abandono da pauta da negritude. Nessa lógica, ser Cristão significa não exercer a sua negritude. É uma clara tentativa de embranquecer a consciência de uma juventude que discute cada dia mais questões de raça, de gênero e de sexualidade.
Esse fenômeno fica evidente quando olhamos para o apoio da maioria das lideranças evangélicas ao bolsonarismo e para o silêncio da igreja diante de corpos negros fuzilados, torturados e assassinados.
Por isso reafirmo que nós, negros, periféricos e pessoas comprometidas com os direitos humanos e com a luta antirracista, não podemos mais esperar que os ídolos da branquitude brasileira caiam sem nenhum tipo de questionamento, tensão ou confronto.
Assim como a hegemonia da Igreja brasileira e de seus seminários teológicos exaltam os seus primeiros missionários, que eram brancos, escravocratas, omissos e comprados pelo silêncio do terrorismo que acontecia no Brasil contra os negros, a branquitude tenta relativizar a figura do Borba Gato.
O Brasil do século 21 traz desafios enormes para a Igreja Evangélica, visto que 59% dos evangélicos são negros. Eu me recuso a aceitar que o Jesus dos missionários brancos do Sul dos EUA é o mesmo que nasce em uma das piores periferias da região da Galileia.
O Messias que nasce na província de Nazaré tem uma experiência de ser perseguido pela estrutura do Estado. Ele foi condenado à pior sentença que o governo poderia dar em sua época e, sem nenhuma comoção, foi assassinado.
Precisamos nos perguntar, qual o povo que foi condenado pelas piores sentenças que o Estado poderia dar? Qual é a população que, na história desse país, é assassinada sem nenhuma comoção pública?
A experiência da Cruz se encontra na experiência do tronco. Derrubar os ídolos da Igreja branca é derrubar a própria branquitude e suas estruturas que tramam a morte do povo negro em todas as dimensões da vida. É derrubar a lógica dos que crucificaram Jesus e dos que escravizaram, açoitaram e assassinaram negros e indígenas em nome de Jesus.
Isso não é um chamado para a construção de um mundo melhor, mas para a construção de um novo mundo.
Jackson Augusto
É batista, integrante da coordenação nacional do Movimento Negro Evangélico, membro do Miqueias Jovem América Latina, criador de conteúdo no canal Afrocrente e articulador nacional do PerifaConnection