“Glória, a todas às lutas inglórias”: por que incendiar a estátua de Borba Gato é sobre revisionismo histórico?

No último sábado, dia 24 de julho, ocorreram manifestações contra o governo Bolsonaro e suas políticas genocidas em diversas cidades brasileiras. Em São Paulo, no bairro de Santo Amaro, grupos de manifestantes com sede de justiça histórica atearam fogo na estátua de Borba Gato, bandeirante escravocrata de pessoas negras e indígenas no século XVIII. Mas, o que essa atitude representa para o revisionismo histórico? Primeiramente, gostaria de pontuar que sou museóloga, com propriedade para falar do assunto para além de uma perspectiva militante e, obviamente, sem desvencilhar de quem eu sou: mulher negra. Vamos lá! As estátuas são construídas em espaços públicos para homenagear figuras que representam determinado momento da nossa história. E, infelizmente, o marco de uma sociedade colonialista está enraizado nessas estátuas que contam narrativas a partir do olhar eurocêntrico –tornando os nossos vilões em saudosos heróis. É muito simbólico que esses tidos como “ícones” (homens brancos, europeus, colonizadores) ocupem os espaços públicos, nas construções de monumentos e nomes de ruas, pois suas imagens fixadas na cidade inspiram poder e manutenção do status de uma memória coletiva vergonhosa: do sequestro e da escravidão dos corpos negros e indígenas. Essas estátuas, que demonstram soberania em nosso país, oprimem a nossa existência até os dias atuais. Imagine o quanto é desumano ver os torturadores dos nossos ancestrais em posição de destaque e memória nas cidades?

O intelectual Silvio Almeida, numa entrevista para o Roda Viva em 2020 sobre o assassinato de George Floyd e as manifestações “Black Lives Matter” nos Estados Unidos, que ocasionou protestos ao redor do mundo e a retirada destes símbolos coloniais, diz que há uma comoção quando essas estátuas são destruídas, mas não há nenhuma sensibilidade ou indignação quando morre um negro. Ele também defende o revisionismo histórico com a intervenção dessas homenagens, pois “construir uma estátua é um ato político e retirar uma estátua também é um ato político”. Nessa linha de pensamento, reforço que incendiar a figura do Borba Gato não é apagar a nossa história; pelo contrário, é entender o percurso de como um escravocrata foi erguido e consagrado, considerando a urgência de revisar o nosso passado para ressignificar o presente e projetar o nosso futuro. Nós, população brasileira, não podemos aturar mais essas violências simbólicas e históricas que açoitam a diversidade. A cidade e seus espaços públicos são plurais e não podem ser ocupadas por tiranos postos como célebre. Aldir Blanc e João Bosco, na composição “Mestre Sala dos Mares”, homenageia Antônio Cândido, líder da Revolta da Chibata (1910), onde marinheiros negros lutavam contra as violências físicas dos europeus, acendendo a resistência popular no Brasil. As chamadas “lutas inglórias”, nas quais seguimos recuperando para não nos esquecermos jamais, é que precisam ser expostas nas cidades como símbolos de orgulho e resistência.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

+ sobre o tema

Mobilizações de professores negros em Salvador na Primeira República

Em 16 dezembro de 1912, a localidade do Politeama,...

E a favela venceu… Será?

Um dos slogans mais ouvidos ultimamente, tal qual um...

O que você considera excepcional e lindo, pode ser só branco

Tenho uma amiga negra, Roziane Ferreira, economista, que gosta...

Crianças negras e a liberdade para sonhar

Maternidade e paternidade estão entre as maiores e mais...

para lembrar

Afetos e relações raciais: quando o “suposto” afeto ofusca o racismo

Querida Branca, Estou muito cansada hoje. Apesar disso, a necessidade...

“como mulher negra, o título ‘Morena’ intencionalmente dilui minha visível identidade racial.”

Embora algumas expressões do racismo antinegro brasileiro sejam impossíveis...

Vozes que se não silenciam

Com a medida impositiva do isolamento social tão necessária...

A mulher negra no mercado de trabalho

O universo do trabalho vem sofrendo significativas mudanças no...

Mercados de exclusão: racismo e sexismo em propagandas de alimento infantil no século XIX

O estabelecimento da industrialização provocou mudanças profundas nas sociedades contemporâneas. Apesar disso, pouco refletimos sobre as histórias por detrás dos produtos introduzidos no nosso...

Tocar tambor é um ato de resistência!

No Brasil antes da invasão, já se ouvia os maracás, os sons percutidos nos troncos de madeira, as buzinas, os pés batendo forte no...

MaravilhElza

De ti não tenho fotinha, comprovação de que te conheço, você vive em mim e me ilumina. Tenho memória, músicas, CDs, vinis e texto. Devo...
-+=