Refletindo sobre a Cidadania em um Estado de Direitos Abusivos

Em um momento em que nos vemos confrontados com atos de violência policial chocantes e sua não punição, como nos recentes casos de abuso de poder envolvendo policiais e entregadores do Ifood, violência contra mulheres e seus filhos, sem a menor intenção, de acordo com os laudos que os inocentam, de cessar vidas, torna-se crucial repensar o significado da cidadania, dos direitos civis e das políticas sociais em nossa sociedade, principalmente em governos de esquerda.

Dalmo Daltron delineia a cidadania como um conjunto de direitos que possibilita a participação ativa na vida e no governo. No entanto, vale ressaltar que essa cidadania não é reconhecida unilateralmente pelo governo. Segundo a ONG República.org, dedicada à melhoria da gestão de pessoas no serviço público, os servidores públicos brancos ocupam 73% dos cargos, enquanto pretos e pardos ficam relegados a apenas 23,72%. Isso significa que a forma como os serviços que deveriam proteger chega não é a mesma para aqueles que se parecem com esses.

Edward Saind destaca como o olhar eurocêntrico transformou os não europeus em “outros”, vistos como ameaças. Isso não apenas os coloca em uma posição de menor direito, mas também revela a extrema desigualdade de acesso aos direitos e à justiça em comparação com pessoas brancas. Infelizmente, casos emblemáticos como os de Claudia Ferreira, brutalmente arrastada pela polícia militar, e Evaldo Rosa, músico morto com 80 tiros, Chacina do Curió e do Cabula, ilustram como essa desigualdade de acesso à justiça perpetua-se em nossa sociedade e leva seus atores a serem absolvidos sem nenhum constrangimento ou revolta social.

A desigualdade de acesso à justiça também se manifesta nas estatísticas: para cada policial morto, sete ou mais mortes ocorrem nas comunidades onde aconteceu o crime, sem que nenhuma explicação seja dada com relação às vidas ceifadas, demonstrando uma indiferença preocupante por parte da sociedade em relação à vida dos considerados marginalizados e moradores de territórios empobrecidos.

Diante destes elementos, discutir segurança pública não pode se limitar a quem mata e quem morre. É fundamental envolver as comunidades afetadas diretamente por essas ações violentas e questionar que tipo de segurança estamos almejando. É intrigante como certos setores privilegiados da sociedade conseguem rapidamente mobilizar recursos e atenção para suas agendas, enquanto pessoas negras continuam a sofrer e morrer em silêncio, como se suas vidas não importassem.

O ciclo de violência que assola as comunidades negras, com protagonismo branco, não é novo. Se antes o tráfico negreiro dominava o cenário, agora vemos aviões governamentais, helicópteros e verdadeiras fortunas sendo usados para sustentar esse mercado que se modernizou, mas continua tendo pessoas negras como vítimas em massa. Famílias de áreas não-negras enriquecem com o tráfico sem que nenhuma consequência lhes atinja. A economia do tráfico e a economia carcerária estão entrelaçadas, perpetuando um sistema injusto em que o poder e o privilégio, principalmente quando se trata de sistema de justiça, continuam nas mãos daqueles com “olhos mais azuis”.

Em cidades como Salvador, a segregação é evidente, com bairros nitidamente negros sofrendo mais com a falta de segurança, serviços promotores deste bem-estar e com uma justiça condescendente. A absolvição e o silêncio frente a essas barbaridades destacam a necessidade urgente de investigar não apenas os executores, mas também os mandantes desses crimes.

Debater segurança pública requer um olhar sobre a economia e a geração de renda do mercado criminoso, especialmente nas comunidades empobrecidas. É preciso compreender como o dinheiro do crime circula e como ele perpetua a falta de segurança e oportunidades nessas áreas, afinal, o tráfico movimenta R$ 17 bilhões por ano no Brasil, sendo o narcotráfico a atividade ilegal que mais rende dinheiro ao redor do mundo de acordo com o Atlas da Violência (2020), mas pouca atenção é dada à sua cadeia econômica ou ao papel do sistema de justiça nesse contexto.

Não podemos mais ignorar o papel do mercado e do judiciário na perpetuação da violência e da injustiça em nossa sociedade. É hora de confrontar o silêncio e a complacência com as injustiças, e olhar para a segurança pública com uma lente que revele as estruturas de poder e privilégio que a sustentam, seja pela conivência, pouca preocupação com as pessoas que morrem e a corrupção.

Para enfrentar esse cenário, é necessário debater não apenas a violência em si, mas também as estruturas que a perpetuam. Isso envolve questionar os privilégios, a impunidade, o acesso judiciário e o silenciamento em torno de questões-chave, como a distribuição de recursos públicos e a participação cidadã. Ignorar esses aspectos é perpetuar um ciclo de morte e injustiça. É hora de olhar para além das balas que matam e enfrentar as raízes profundas da desigualdade em nossa sociedade, uma vez que continuar culpando apenas a bala que acerta o alvo é ignorar o sistema que a arma, se beneficia, enriquece e a direciona do mesmo modo que o tráfico negreiro no período escravagista.

Ainda somos os oprimidos, enquanto os senhores lucram.


Luciane Reis é publicitária, professora de educação financeira, especialista em educação on line e Mestra em Gestão e desenvolvimento pela Faculdade de educação e administração da UFBA.  Lider acelerada pelo Programa Marielle Franco do Fundo Baobá e Presidenta do Mercafro


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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