As tantas porteiras desnecessárias

“Por que está dentro de mim, se porteira é coisa que existe fora? Me abro para você sair.”

Achei estas frases, escritas por mim, perdidas na agenda. E se juntaram a algo que venho pensando há um tempinho. Quantas demandas que nós, pretos e pretas, temos que dar conta para, simplesmente, sermos pretas e pretos. Tantas porteiras fincadas. Quem colocou porteira aqui e acolá?

No terreiro, é dizer, que já ouvi algumas vezes: “da porteira para fora é uma coisa, da porteira para dentro é outra”. Orientando nossos maus-modos-e-maus-costumes de cultura não-preta, que não são bem-vindos ali na roça. Entendi por muito tempo. Concordei.  Concordo até chegar na frente da porteira, saindo do terreiro e indo para casa: eu não quero ser outra quando atravessar a cancela. Quero levar comigo o que vivi aqui estes dias. Levar em mim o bocadinho-de-novo, que aprendo em todo canto e tempo, dentro do ilê. Então, para que esta porteira aqui?

Em minha outra escola-preta, a capoeira angola, desde sempre que ouço que a roda de capoeira é um espelho da roda da vida. Meu mestre sempre fala que não tem este ou esta que consiga disfarçar sua personalidade quando joga. Transparece. Lá também se diz: não venha para cá fazer atividade física, ir embora e voltar no próximo treino (nem usamos a palavra treino, inclusive, para nossos encontros). Porque estamos lá para aprender a viver, pertencer e nos zelarmos como grupo (e grupo, nada mais é do que extensão de nosso corpo, mais uma camada nossa). Suamos, sim. Movemos o corpo, embalados, sobretudo, pelo que fez a capoeira nascer: manter o ser-negro vivo. E com este passado, nos desafiamos ao movimento mais complexo de ser feito, que é nos movimentarmos para dentro, como ensinou o filósofo congolês Doutor Fu Kiau, falando da importância de encontramos nosso centro. No mesmo sentido, o ator e djeli do Mali, Sotigui Kouyate, lembra que a viagem mais longa da vida é a que se parte da cabeça, para se chegar até dentro de nós mesmos. Vamos nesta estrada interminável e não precisa de portão aqui. Porque, quando se começa este caminho de volta, não se quer parar mais.

Mas que diacho, estas trancas aqui. Uma grande grade separa estudar e aprender, informação e conhecimento, conhecimento e sabedoria, razão e coração, técnica e sentir. A gente se bate nela, quando somente (e enfatizo o “somente”) vemos sobre as culturas-pretas em livros, vídeos, sites. Quando, bom mesmo, é pegar para mim, deixar a informação aqui dentro, ganhando sentido, fundamento e vida. Para, assim, ela ser gerada e nascer conhecimento, aprendizado-orgânico em mim. É bem como a gestação de um filho mesmo, sabe? A informação, referências de nossas histórias-pretas, chega, procura parte minha compatível para fecundar, leva tempo e paciências, para, depois deste encontro, gerar em mim algo que me pertence e ao qual eu passo a pertencer. Você vai ver, vai ser acionado em você. Taí, atrás de tantas porteiras, mas está aí. É sua memória ancestral. Sem portas nem porteiras, eu deixo ela me guiar. De olhos fechados e coração pulsante-pensante, disposta a ser preta sempre e em tudo.

Como Orixá, que passa pela entrada de qualquer lugar e gira o corpo ao cruzar a porta, não dando as costas para onde veio, porque ainda vai retornar. Como o xirê, que gira em sentido anti-horário para que acessemos nosso passado, o passado dos nossos. Como o sentar no chão, em roda, que não tem começo nem fim. Como o que morre alimenta a terra para nela nascer mais. Como uma parte de mim é meu ancestral. Como poemou o sábio quilombola do Piauí, Nego Bispo, “nós somos começo, meio e começo”. Em nosso modo-preto de sentir e viver não precisa porteiras. Tira. Sejamos povo preto em passos ininterruptos, sem tropeços, sem esbarrar em portões, que a brancura coloca em todo lugar. Ela é que gosta de cerca. Os nossos não. Para el@s somos floresta, parte que complementa a natureza, que está sempre aberta.

 

Referências:

Palestra Dr Fu Kiau no III Encontro Internacional de Capoeira Angola (Salvador, 1997), transcrita em: http://www.campodemandinga.com.br/2011/08/palestra-do-dr-fu-kiau-salvador-1997.html

Documentário: Sotigui Kouyaté, Um Griot no Brasil. https://www.youtube.com/watch?v=sJd1te_3pjI

 

Bio:

Sou Marina Ribeiro Lopes. Na peleja pelo ganha-pão, trabalho como bombeira militar. Na peleja por me melhorar, vivo capoeira angola no Grupo Abaô, sou yaô no Ilê Axé Opo Oxogunlade, parte da Auto-Organização de Mulheres Negras de Sergipe Rejane Maria, bolsista do Programa de Aceleração de Lideranças Femininas Negras Marielle Franco (Fundo Baobá), autora dos textos do quarta-às-9, dentre outras coisinhas.

@quarta.as.9

Facebook.com/marina.ribeiro

 

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