Eu que até então nunca tinha parado pra pensar que minhas mais velhas poderiam ter vivido, ouvido, ou criado contos de fadas, além dos itãns… fui fisgada pela possibilidade de pensar sobre os contos de fadas das minhas avós, bisavós e tataravós… E, em meio a tantas corregias, em plena madrugada de trabalho me percebo envolvida por uma reflexão profunda que chega a mim pelas queridas Laiara Amorim Borges, e Onilia, uma querida irmã de segundo grau1.
Arrimo de família é a pessoa que serve de amparo e referência a uma família, colaborando de forma pontual e processual, provendo as condições e os meios de subsistência. Deve ser por isso, que segundo o IBGE mais de 45% das famílias brasileiras são chefiadas por mulheres, que são em sua maioria negras e sem cônjuge.
Os murros de arrimo, que se pesquisar bem, devem ter origem africana, já que é de lá que vem a engenharia, são um processo de equilíbrio entre o peso e a gravidade, entre a terra que sustenta e é sustentada e outros elementos, entre eles cimento, ferro e outros materiais, que mesmo sendo mais ou menos processados, vieram da natureza, geralmente do fundo do chão.
É possível que muitas pessoas brancas desconheçam esta expressão, mas esta é uma realidade complexamente arquitetada na vida das pessoas negras há várias gerações. Um grande peso que em razão das desigualdades raciais, geracionais, monetárias e de gênero, precisa ser equilibrado e para isso, um esquema de sustentação é organizado, contando as vezes com um ou mais pilares ou sintas.
Quando Onilha nos ensina: “Ser arrimo é apoio afetivo, é amor negro, é auto amor. Os protocolos econômicos são outros.” Me lembro de bell hooks, que generosamente no texto Vivendo de Amor2, contextualiza nossas experiências nesta ceara da vida, desde o contexto da colonização escravista, quando a sobrevivência das pessoas de origem africana “estava muitas vezes determinada por sua capacidade de reprimir as emoções (…) ” em um contexto extremamente perigoso, violento e inseguro para os negros, como é a sociedade racista brasileira, fomos aprimorando nossas estratégias de sobrevivência, criando equilíbrios complexos e improváveis entre a economia afetiva e economia financeira.
bell hooks nos convida à “(…) reconhecer que a opressão e a exploração distorcem e impedem nossa capacidade de amar.”. O racismo patriarcal e os sistemas de supremacia branca como desastrosas represas, tem dificultado nosso caminho pelo curso da história, mas não tem conseguido impedir nossos movimentos e encontros. Nós somos água. Somos vida e estamos vivas. Nós nos movimentamos, nos organizamos em gotas e formamos nuvens, gelo, vapor e oceanos. A cada geração aprendemos a amar mais e melhor. Aprendemos mais sobre reconhecer e respeitar nossas necessidades afetivas, emocionais, psíquicas e espirituais. A prática do amor, mesmo em condições precárias e adversas, tem gerado nossa expansão.
Se em alguns contextos amar significava não expressar afeto, dar comida, abrigo, ou qualquer outra coisa que pudesse garantir nossa existência, cada vez mais EXISTIR para nós povo negro na diáspora significa ter e ser referência, significa criar novas histórias, novas realidades subjetivas e sociais. Neste sentido,ser arrimo de família neste momento da história exige de nós entender a complexidade da obra que somos parte. Onde os opressores só enxergam barracos nós sentimos a presença e a força viva das pirâmides.
Ser arrimo de família hoje é prover a si mesma, oferecendo-se recursos materiais e simbólicos, entre eles dinheiro, carinho e amor. É nutrir-se integralmente. É fazer e manter sua reserva financeira. É se respeitar e estabelecer limites. É prover as pessoas que te cercam, com referências de como viver de outras formas, de como não se perder na culpa, nem no medo, nem na mágoa. Mais que oferecer dinheiro, é inspirar coragem, autoestima e esperança. É
ajudar a resgatar a autoconfiança. O arrimo se equilibra e se expande e com isso amplia as possibilidades de existência afetiva e efetiva da família e das próximas gerações.
Percussora do movimento de luta pelos Direitos Civis do povo Negro norteamericano a Dona Rosa Parks, não cedeu o seu lugar. Ela ousou fazer o que precisava ser feito. E fez algo diferente do “esperado”. Fez algo diferente do que todo mundo vinha fazendo resignadamente ao longo de muito tempo. E sustentou seu ato andando muitos quilômetros a pé. Nesta jornada um reporte perguntou à ela, uma vez: “Mas, andando este tanto a senhora não esta cansada?” Ao que ela respondeu: “Meus pés estão cansados, mas minha alma não.” Com aqueles atos ela foi e é arrimo da família negra na diáspora.
Muitas vezes estamos cansadas no corpo inteiro, e algumas vezes até na alma. Mas, temos o direito e o dever de nos autocuidar, e receber cuidados, temos o direito e o dever de descansar, de desfrutar, de usufruir do que há de melhor sem culpa. A solidariedade não pode ser um sacrifício, não pode ser nem corrente, nem abismo, nem ralo por onde escorre aquilo que temos. É possível oferecer apoio sem se sobrecarregar ou se esfolar, respeitando a sua própria condição e a condição do outro. Sem criar uma relação de dependência, sobrecarga, subjugação, inferioridade ou opressão. O verdadeiro apoio é cooperação. É uma aposta em que todos os envolvidos se responsabilizam, agem e ganham.
No livro Ensinando Pensamento Crítico Sabedoria Prática, bell hooks deixa em negrito: “O amor sempre nos afastará da dominação em toas as suas formas. O amor sempre nos desafiará e nos transformará”(p.244). Talvez neste agora, nem eu, nem você possamos comprar um avião para cada menina negra desta Améfrica Ladina3 que sonha com o céu. Mas, talvez nós possamos ajudar na vaquinha da primeira hora de voo. Nós mulheres negras somos sim alicerces de uma nova civilização, de um novo tempo que é ancestral e é agora. E nem todo mundo vai entender a complexidade desta obra. Ainda bem que na nossa família tem muito pedreiro.
1 Outro dia Enzo e Eliz meus filhos estavam brincando com as amigas Luana e Luiza, Filhas da Luciana minha amiga. A felicidade delas era tanta que decidiram estabelecer um nome para o vínculo existente entre elxs e coletivamente estabeleceram um entendimento expresso pela Luiza: “Ahhh já sei, somos primos de segundo grau.” (Numa tarde de Outubro de 2021). Onilia e eu não temos convivência direta, mas tenho me beneficiado muito de tudo que ela partilha com aminhas irmãs Laiara e Lorena Amorim Borges, e sinto por ela grande admiração, gratidão e afeto.
2 Disponível em: http://www.olibat.com.br/documentos/Vivendo%20de%20Amor%20Bell%20Hooks.pdf
3 Ver Lélia Gonzales – Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4584956/mod_resource/content/1/06%20-%20GONZALES%2C%20L%C3%A9lia%20- %20Racismo_e_Sexismo_na_Cultura_Brasileira%20%281%29.pdf
Mini currículo
Neta de Genoveva Rosa de Amorim e Maria Trindade, ativista dos movimentos negro, de mulheres negra, Hip Hop e LGBT. Sou Psicóloga, Professora de Psicologia na Puc Minas, Moderadora de Processos Grupais, Doutora e Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais. Sou arte-educadora e fui Tutora do Programa Afirmação na Pós Graduação. Compôs a Coordenação da Articulação Nacional Juventude Viva – Claves/ Fiocruz e a Coordenação do Juventude Viva – Plano de prevenção à violência contra a juventude negra do Governo Federal. Foi Subsecretaria Estadual de Políticas para Mulheres no Governo de Minas Gerais. Colaborei na criação da disciplina de Psicologia Social do Racismo no curso de Psicologia da UFMG. Sou Mulher de Axé, lésbica e periférica e estou conselheira do CRP-MG.
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