[tudo fica mulher como uma musiquinha… pus essa para acompanhar sua leitura ;) ]
Por Tulio Custódio, do Medium
Assisti apenas recentemente o filme sobre início da história de romance entre Michelle e Obama. Belo filme. Bem, não sou nenhum crítico de cinema para comentar extensamente — e tenho certeza que há bons artigos sobre o filme, mas que admito não li todos.
O filme, porém, me despertou uma dimensão sensível sobre negros e afetividade: a comunicação. É um filme todo estruturado em diálogo, e boa parte dele — apesar de curto, cerca de 1h30min — é de conversas entre Michelle e Obama. Ela advogada associada de um escritório; ele, estagiário associado.
A beleza do diálogo é que ele estabelece algo, de modo sutil, muito difícil de vermos representado no cinema: humanidades negras. Isso: o diálogo nesse filme serve para nos conectarmos com um mundo próprio de troca entre dois sujeitos, duas subjetividades, ali colocadas na troca e no interesse que vai sendo desenvolvida um pelo outro.
A troca, o diálogo, também é importante para, ao desvelar a humanidade presente nos dois personagens, estabelecer a especificidade dos dois: é uma mulher negra e um homem negro, em um país racista. A particularidade das perguntas, das dúvidas e anseios colocados ali em cada fala evidenciam realidades específicas do que é ser aquela mulher negra — com recorte de classe e capital cultural, sendo Michelle uma mulher de alta educação — e o que é ser aquele homem negro — na particularidade de Obama que passa pela alta educação, ser fruto de um casal interracial e intercultural (afinal, não se trata apenas de homem negro com uma mulher branca, mas um homem negro queniano e uma mulher branca norte-americana, com cultural e backgrounds muito particulares que desembocam na formação do ser Obama; sugiro que assistam “Barry”, no Netflix).
As questões que eles trazem são ordem de muitas das conversas e reflexões que temos hoje, no debate público sobre questões raciais e nossas individualidades. Questões como as dúvidas de Michelle acerca de sua carreira. Ou sua pressão por ser uma mulher negra em um espaço branco. As questões de Obama com seu pai e abandono parental — e, sem dúvida [isso valeria um texto a parte], que concernem sua masculinidade — . Os significados de suas expectativas, suas visões enquanto negros em plena ascensão acerca das comunidades negras. A troca sobre experiências afetivas, e sobre passado de não-relacionamentos de Michelle e de relacionamentos interraciais de Obama. Ou ainda, e esse é um ponto muito rico, questões sobre família e as preocupações que concernem indivíduos dentro de uma estrutura na qual negros ascendem individualmente e não como grupo. Esse filme é um presente sensível e aspiracional para nossas subjetividades negras.
Sobre o fato de ser um casal negro, “afrocentrado” (as aspas são intencionais), acho que já teve bastante coisa escrita: da importância deles como modelo, da importância dos EUA ter tido um presidente negro que entrou na Casa Branca com uma mulher negra de pele escura, da família nuclear dentro do contexto no qual racismo destruiu as formas de afetividade e formação de famílias entre grande parte dos negros, etc etc. Tudo isso podemos também tirar desse belo filme.
Mas o diálogo. O diálogo. Isso é próprio dali. Estamos acostumados a ver coisas assim em filmes tido como cults de brancos, como filmes de Woody Allen: um casal colocado em constante fala, exteriorizando suas questões, um exercício de criação de um universo particular, que é dividido através da arte para o grande público. Até temos filmes com diálogos, mas não nessa natureza da troca entre casais (como o belo Waiting to Exhale e o The Brothers, ambos com mulheres e homens negros, respectivamente, em diálogos humanizadoras da experiência sensível de ser negro). Catártico, inspirador, etc etc.
Michelle e Obama é tudo isso. Não apenas para mim, homem negro em relacionamento com uma mulher negra, e, dentro do nosso universo particular, encontramos espaços de troca de nossas questões, anseios. Mas, acredito, para todas as mulheres negras e homens negros, que se encontram no espaço da diáspora, envolvidos em sociedades complexas de intersecção entre capitalismo, racismo, machismo e territorialidades. Está tudo ali. De modo sensível.
[dedico esse textinho para meus pais. e para Sté ❤ vocês são inspiração e experiência]
Tulio Custódio
Sociólogo, Curador de Conhecimento na Inesplorato, criador do site @Pitacodemia e membro do Coletivo Sistema Negro. Mais: about.me/custodta ;)