Denegrindo Ela

Um dos principais alertas que faço é que hoje mulheres negras como eu são apenas 0,4% dos cargos executivos nas 500 maiores empresas do país

Por Luana Génot, Do O Globo

Foto em preto e branco de Luana Génot-  mulher negra, de cabelo curto, usando brincos grandes- sorrindo
Luana Génot (Foto: Leo Martins / Leo Martins/ O Globo)

Quando aceitei o convite para ser colunista da revista ELA, passou um filme na minha cabeça. Voltei dez anos atrás. Aos tempos em que ainda atuava como modelo e lia o ELA, aquele que ainda tinha formato de caderno no jornal O GLOBO. Já denegri ELA no passado. E antes que o injustiçado termo denegrir possa vir à sua cabeça como algo negativo, permita-me positivá-lo. Um de seus significados é tornar negro, enegrecer. Pode conferir no dicionário. Quer algo mais incrível do que isso? Venho tornando espaços negros desde que me entendo por gente!

Quando denegri ELA pela primeira vez, este já era um espaço cobiçado e disputadíssimo pelas agências de modelos. Fui capa. Minha mãe deve ter comprado uns 15 jornais naquele dia. Na época, achei exagero. A Dona Ana ostentava o jornal como se fosse um troféu: “Minha pretinha na capa do Caderno ELA! Que honra, meu Deus! Minha modelo internacional”, mamãe repetia. O editorial era assinado pelo querido amigo e brilhante stylist Rogerio S.

Na foto principal, eu estava sentada em uma cadeira com a mão repousada sobre minha perna. E na outra, segurava algo parecido com galho seco. O título era: “Rumo à África”. A ideia era anunciar a chegada da Copa do Mundo de 2010 à África do Sul.

Hoje, olho para estas fotos com carinho. São belíssimas. Mas também reflito o quão limitadas aquelas imagens eram. Começando pelo título… quando vejo “Rumo à África”, fico aqui pensando: Qual África? Que mania mais mesquinha a nossa de ver a África como um país e não a heterogeneidade dos seus 54 países, suas diversas línguas, religiões, raças e etnias. Entendi que o papel de denegrir os espaços por onde passo é também o de ressignificar. De fazer pensar em questões que muitas vezes passam despercebidas.

Foi o cansaço e a reflexão sobre estas limitações que me motivaram também a cursar Publicidade. Voltei para o Brasil, após temporadas de moda, e denegri a PUC-Rio. Tornei-me bolsista no curso de Comunicação Social. Fui para os Estados Unidos como bolsista do Programa Ciência Sem Fronteiras, denegri a University of Wisconsin-Madison. Fui voluntária da campanha do Barack Obama, trabalhei em uma agência de publicidade em Chicago. Quando retornei ao Brasil, iniciei o projeto do Instituto Identidades do Brasil (ID_BR) que tomou corpo em 2016 com a campanha Sim à Igualdade Racial.

Ela nasceu para fazer as pessoas refletirem sobre raça e mercado de trabalho. O mestrado em Relações Étnico-raciais me denegriu mais ainda. Nasceu meu livro. E um dos principais alertas que faço é que hoje mulheres negras como eu são apenas 0,4% dos cargos executivos nas 500 maiores empresas do país. Apesar de sermos parte de uma parcela majoritária de mais de 110 milhões de pessoas. Se já observamos casos em que empresas que investem em diversidade e representatividade, além de cumprirem a lei, mostram resultados acima da média, por que esperar para fazer o certo?

Ainda resta alguma dúvida de que o país, para crescer, precise denegrir mais seus espaços e oportunidades? Denegrindo ELA e denegrindo os seus pensamentos, espero que estejamos a um passo de denegrir um Brasil para que ela cresça de forma mais justa. Não custa nada sonhar. E eu tenho um sonho…

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