Eu me arrependo dos meus silêncios

Toda mulher que foge do que lhe é imposto é tida como louca, histérica

Por Djamila Ribeiro, Da Folha de S.Paulo

Djamila Ribeiro- mulher negra, usando tranças e batom vermelho- olhando para frente
(Foto: Lucas Lima)

Um dos temas que norteia o pensamento de muitas feministas negras é o silêncio. É a importância de romper com um regime de autorização discursiva que nos cala, hierarquiza a humanidade, nos põe na condição de outro do humano, aquela que não é pensada a partir de si, mas sempre pelo olhar de quem a define.

Silêncio, aqui, é entendido como forma de silenciar existências ou confiná-las a lugares marcados, subalternizados, fixos.

Como mulheres, fomos ensinadas a calar, a não saber dizer não para não incomodar, a falar baixo ou falar o que se espera de “uma mulher”.

Mulheres negras carregam historicamente o estereótipo da “angry black woman”, a mulher negra raivosa ou agressiva, a “barraqueira” ou, como dizia a grande intelectual Lélia Gonzalez, “a criadora de caso”.  Isso advém do fato de essas mulheres precisarem gritar para serem ouvidas ou terem sua humanidade reconhecida.

Ilustração de três mulheres negras, uma apoiada na outra
(Linoca Souza/Folhapress)

Toda mulher que foge do que lhe é imposto é tida como a louca, a histérica. Recusar-se a viver uma vida limitante é visto como perigoso para quem limita. E nós crescemos acreditando que mulher boa é quieta, pois fazer barulho desestabiliza.

Grada Kilomba discute o silêncio como a afirmação do projeto colonial utilizando como metáfora a máscara imposta à escrava Anastácia.

Não só nossas vozes são silenciadas, mas também nossas existências, posto que relegadas à condição de outro.

Enfrentar, ou como disse Conceição Evaristo, estilhaçar a máscara do silêncio, torna-se fundamental para que possamos definir a nós mesmas.

A premiada escritora Alice Walker, autora de “A Cor Púrpura”, tem uma frase muito marcante: “Não pode ser seu amigo quem exige seu silêncio”.

Numa sociedade em que somos impelidas a nos calar, penso essa frase como um importante alerta.

Quantas vezes, ao lutar contra injustiças, escutamos coisas como “deixa para lá”, “pare de criar caso”, “tenha mais senso de humor”.

Interessante perceber que a pessoa ofendida é quem precisa se calar ou ser superior moralmente em vez de exigir que quem ofende pare.

Numa sociedade de imagens, em que pessoas estão mais preocupadas em projetar uma estampa revolucionária do que de fato observar seus comportamentos, fica mais difícil não ser tachada de “louca raivosa” quando se cobra respeito.

Outra forma de silenciar é não respeitar a produção intelectual de mulheres negras. Todo mundo quer debochar ou falar a respeito disso sem conhecer de fato —para não se sentirem incomodados nos seus sonos injustos, parafraseando Conceição Evaristo.

Para criticar, é preciso conhecer seu objeto de crítica, mas muita gente se sente autorizada a falar sobre o que não sabe. Ou ainda, em vez de debater ideias, ataca o interlocutor.

Se a interlocutora for mulher, sobretudo uma mulher negra, dupla antítese de branquitude e masculinidade, como afirma Kilomba, não há alteridade, há a necessidade de aniquilação, de botá-la “no seu lugar”, seja atacando, seja debochando —próprio de quem se julgou como autorizado a falar, de quem não tem argumentos para contrapor “ethos” desconhecidos por eles.

Desconhecidos, posto que historicamente silenciados. Quando Lélia Gonzalez diz “o lixo vai falar e numa boa”, a intelectual afronta e transcende o sujeito supostamente autorizado que vai se incomodar com a quebra do silêncio.

Romper silêncios não é fácil, mas muitas mulheres negras nos mostram o quão necessário é para nossa libertação.

Dá medo. Quem está no poder sabe punir aquelas que ousaram falar —pelo boicote, deslegitimação ou apagamento.

Já engoli ou guardei silêncios que me machucaram, nem sempre tive o entendimento necessário ou a força, mas quando sinto medo, recorro a essas mulheres. Em “ A Transformação do Silêncio em Linguagem e Ação”, Audre Lorde nos brinda com um excelente incentivo.

Penso, por mais difícil que seja e entendendo alguns limites, compreender a importância e potência que Lorde nos traz.

“Do que mais me arrependo são dos meus silêncios. Por causa do silêncio, cada uma de nós leva na cara a imagem do seu próprio temor: temor ao desprezo, à censura, aos julgamentos, à aniquilação. Mas, acima de tudo, o temor à invisibilidade. Nós, mulheres negras, sempre temos sido muito visíveis, por um lado, e por outro somos invisibilizadas como consequência da despersonalização do racismo.

Há muitas maneiras de ser vulnerável e não posso evitá-las. Não vou me tornar ainda mais vulnerável colocando o silêncio como uma arma nas mãos dos meus inimigos.”

Leia também:

O pacto branco e a maldição da mediocridade por Djamila Ribeiro

Djamila Ribeiro reflete sobre o desafio de lidar com a extrema-direita

Djamila Ribeiro: ‘A gente luta por uma sociedade em que as mulheres possam ser consideradas pessoas’

 

+ sobre o tema

Como resguardar as meninas da violência sexual dentro de casa?

Familiares que deveriam cuidar da integridade física e moral...

Bruna da Silva Valim é primeira negra a representar SC no Miss Universo Brasil

Bruna da Silva Valim, candidata de Otacílio Costa, foi...

Luiza Bairros lança programas de combate ao racismo na Bahia

O Hino Nacional cantado na voz negra, marcante, de...

Elizandra Souza celebra 20 anos de carreira em livro bilíngue que conta a própria trajetória

Comemorando os 20 anos de carreira, a escritora Elizandra...

para lembrar

Dona Zica Assis responde ao artigo: “Respeite nosso cabelo crespo”

Carta de Zica Assis - Beleza Natural   Oi Ana Carolina, Meu...

Menos de 3% entre docentes da pós-graduação, doutoras negras desafiam racismo na academia

A Gênero e Número ouviu mulheres negras presentes no...

Rita Bosaho é a primeira mulher negra eleita deputada em Espanha

O resultado das recentes eleições é histórico também porque...

Rosana Paulino: ‘Arte negra não é moda, não é onda. É o Brasil’

Com exposição em cartaz no Museu de Arte do...
spot_imgspot_img

Comida mofada e banana de presente: diretora de escola denuncia caso de racismo após colegas pedirem saída dela sem justificativa em MG

Gladys Roberta Silva Evangelista alega ter sido vítima de racismo na escola municipal onde atua como diretora, em Uberaba. Segundo a servidora, ela está...

Uma mulher negra pode desistir?

Quando recebi o convite para escrever esta coluna em alusão ao Dia Internacional da Mulher, me veio à mente a série de reportagens "Eu Desisto",...

Da’Vine Joy Randolph vence o Oscar de Melhor atriz coadjuvante

Uma das favoritas da noite do 96º Oscar, Da'Vine Joy Randolph se sagrou a Melhor atriz coadjuvante da principal premiação norte-americana do cinema. Destaque...
-+=