Toda mulher que foge do que lhe é imposto é tida como louca, histérica
Por Djamila Ribeiro, Da Folha de S.Paulo
Um dos temas que norteia o pensamento de muitas feministas negras é o silêncio. É a importância de romper com um regime de autorização discursiva que nos cala, hierarquiza a humanidade, nos põe na condição de outro do humano, aquela que não é pensada a partir de si, mas sempre pelo olhar de quem a define.
Silêncio, aqui, é entendido como forma de silenciar existências ou confiná-las a lugares marcados, subalternizados, fixos.
Como mulheres, fomos ensinadas a calar, a não saber dizer não para não incomodar, a falar baixo ou falar o que se espera de “uma mulher”.
Mulheres negras carregam historicamente o estereótipo da “angry black woman”, a mulher negra raivosa ou agressiva, a “barraqueira” ou, como dizia a grande intelectual Lélia Gonzalez, “a criadora de caso”. Isso advém do fato de essas mulheres precisarem gritar para serem ouvidas ou terem sua humanidade reconhecida.
Toda mulher que foge do que lhe é imposto é tida como a louca, a histérica. Recusar-se a viver uma vida limitante é visto como perigoso para quem limita. E nós crescemos acreditando que mulher boa é quieta, pois fazer barulho desestabiliza.
Grada Kilomba discute o silêncio como a afirmação do projeto colonial utilizando como metáfora a máscara imposta à escrava Anastácia.
Não só nossas vozes são silenciadas, mas também nossas existências, posto que relegadas à condição de outro.
Enfrentar, ou como disse Conceição Evaristo, estilhaçar a máscara do silêncio, torna-se fundamental para que possamos definir a nós mesmas.
A premiada escritora Alice Walker, autora de “A Cor Púrpura”, tem uma frase muito marcante: “Não pode ser seu amigo quem exige seu silêncio”.
Numa sociedade em que somos impelidas a nos calar, penso essa frase como um importante alerta.
Quantas vezes, ao lutar contra injustiças, escutamos coisas como “deixa para lá”, “pare de criar caso”, “tenha mais senso de humor”.
Interessante perceber que a pessoa ofendida é quem precisa se calar ou ser superior moralmente em vez de exigir que quem ofende pare.
Numa sociedade de imagens, em que pessoas estão mais preocupadas em projetar uma estampa revolucionária do que de fato observar seus comportamentos, fica mais difícil não ser tachada de “louca raivosa” quando se cobra respeito.
Outra forma de silenciar é não respeitar a produção intelectual de mulheres negras. Todo mundo quer debochar ou falar a respeito disso sem conhecer de fato —para não se sentirem incomodados nos seus sonos injustos, parafraseando Conceição Evaristo.
Para criticar, é preciso conhecer seu objeto de crítica, mas muita gente se sente autorizada a falar sobre o que não sabe. Ou ainda, em vez de debater ideias, ataca o interlocutor.
Se a interlocutora for mulher, sobretudo uma mulher negra, dupla antítese de branquitude e masculinidade, como afirma Kilomba, não há alteridade, há a necessidade de aniquilação, de botá-la “no seu lugar”, seja atacando, seja debochando —próprio de quem se julgou como autorizado a falar, de quem não tem argumentos para contrapor “ethos” desconhecidos por eles.
Desconhecidos, posto que historicamente silenciados. Quando Lélia Gonzalez diz “o lixo vai falar e numa boa”, a intelectual afronta e transcende o sujeito supostamente autorizado que vai se incomodar com a quebra do silêncio.
Romper silêncios não é fácil, mas muitas mulheres negras nos mostram o quão necessário é para nossa libertação.
Dá medo. Quem está no poder sabe punir aquelas que ousaram falar —pelo boicote, deslegitimação ou apagamento.
Já engoli ou guardei silêncios que me machucaram, nem sempre tive o entendimento necessário ou a força, mas quando sinto medo, recorro a essas mulheres. Em “ A Transformação do Silêncio em Linguagem e Ação”, Audre Lorde nos brinda com um excelente incentivo.
Penso, por mais difícil que seja e entendendo alguns limites, compreender a importância e potência que Lorde nos traz.
“Do que mais me arrependo são dos meus silêncios. Por causa do silêncio, cada uma de nós leva na cara a imagem do seu próprio temor: temor ao desprezo, à censura, aos julgamentos, à aniquilação. Mas, acima de tudo, o temor à invisibilidade. Nós, mulheres negras, sempre temos sido muito visíveis, por um lado, e por outro somos invisibilizadas como consequência da despersonalização do racismo.
Há muitas maneiras de ser vulnerável e não posso evitá-las. Não vou me tornar ainda mais vulnerável colocando o silêncio como uma arma nas mãos dos meus inimigos.”
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