Depressão pós-parto: Precisamos admitir que maternidade não é ‘dom natural’

Podemos falar em números, ou podemos falar de pessoas. Uma amiga, uma colega de trabalho, uma vizinha, uma irmã. Nossa própria mãe.

Por  Amanda Mont’Alvão Veloso Do Brasil Post

Podemos localizar a depressão pós-parto naquela área incerta, longe de nós, afastada de nossa realidade, falada apenas porque se conhece alguém que cumprimentou alguém que jantou com alguém que esbarrou em alguém que teve depressão pós-parto.

Ou podemos reconhecê-la como dolorosa, justamente porque é próxima de nossa vida real. Em números, ela já afeta uma em cada quatro mulheres no Brasil, segundo umestudo realizado pela pesquisadora Mariza Theme, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz).

Segundo a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), essa prevalência é maior do que a estimada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para países de baixa renda, em que 19,8% das parturientes apresentaram transtorno mental, em sua maioria a depressão.

A pesquisa entrevistou 23.896 mulheres no período de 6 a 18 meses após o nascimento do bebê.

“Todo ano é assim. A iminência do Dia das Mães me inquieta. Fico aflita. Sou tomada por aquela sensação de impotência, de nada poder fazer ao ver um romantismo irresponsável nos – eu e muitas outras – jogar numa prisão cruel: a da maternidade idealizada, que endeusa uma plenitude quase que onírica e, por isso, faz com que tantas, como eu, que não encontram lugar nesta idealização, se sintam as mais culpadas das mães.

Eu sempre me achei forte. Nos primeiros dias, pensava – ‘Calma, vai passar’.Conversava com outras mães e não via nelas um espelho. Tive muita inveja da plenitude delas. Por que SÓ pra mim era tão difícil? Eu era a diferentona? Não era possível.

A força nunca vinha. Fui murchando, minguando. Me comparava. Me sentia reduzida a uma mãe problemática que não conseguia assumir as consequências e a decisão de seguir com uma gravidez não planejada.”

A jornalista Mariana Garbin era uma filha e uma neta antes de se tornar mãe. Garbin precisou de tempo, amor, compreensão e, sobretudo, ajuda, para se tornar mãe de Clarice, de 3 anos. Afinal, o nascimento de um filho nem sempre coincide com o nascimento de uma mãe.

“Como uma grande amiga diz, a maternidade não é natural, pelo menos não para todas. É algo construído a duras penas. Implica doação, abrir mão da própria vida em alguns momentos. Às vezes, é quase insuportável.

E isso nada tem a ver com amor. Aliás, o meu pela minha filha é incontestável. É só nosso. Por nós, enfrentei e enfrento duras batalhas. Somos, juntas, incansáveis.”

“Culturalmente, a maternidade é vista de forma idealizada e qualquer afeto negativo da mãe para com o bebê é julgado como algo da ordem do impensável”, contextualiza a psicanalista Vera Iaconelli, coordenadora do Instituto Gerar de Psicologia Perinatal, em um artigo para a revista Pediatria Moderna.

“Quando a maternidade é vivenciada, a maioria das mulheres prova sentimentos contraditórios e angústias que não encontram correspondência nas idealizações culturais. É a partir desse sentimento paradoxal entre o ideal e o vivido que uma mulher, mais propensa a desenvolver um transtorno depressivo, pode experimentar um profundo sofrimento, e, eventualmente, chegar a desenvolver a depressão pós-parto”, explica a psiquiatra Elisa Padovan Camillo em um artigo ao Instituto da Psicanálise Lacaniana (IPLA).

Camillo pondera que não se pode considerar que a depressão pós-parto se instale apenas por causa da idealização da maternidade. “Entretanto, o mito da mãe perfeita pode colaborar para que uma ambivalência de sentimentos transforme um momento de suposta alegria em um cenário de vazio, tristeza, sensação de culpa e incapacidade”, completa.

Essa imagem romântica da mãe, representada no amor completo pelos filhos e em sua total plenitude com a experiência da maternidade, é uma construção social recente, aponta a psiquiatra Camillo.

“Até meados de 1760, as mães tinham o costume de deixar seus filhos sob os cuidados das amas de leite e isto estava longe de ser visto como um ato de abandono ou rejeição às crianças. Aos poucos a ideia de mãe que conhecemos hoje começa a ser traçada. Um livro considerado marco dessa mudança sobre a maternidade foi Émile, de Rousseau. Nesse livro, o autor frisa a inadequação de deixar a criança com alguém que não a mãe e inicia-se a partir daí uma mobilização em prol da educação e da mãe ideal.”

Mas a especialista tem uma ressalva: “Não se trata de entrar na questão do que é certo ou errado, porém destacar que há um momento no qual a sociedade passa a exigir da mulher-mãe uma dedicação ligada a um dom natural e automático para a maternidade. A ideia de que a maternidade deve ser um dom natural, ligada ao instinto, passa a ser transmitida de geração para geração e, desde pequenas, as meninas treinam, brincando de bonecas, como ser uma boa mãe.”

Expectativa, realidade

Clarice, a filha de Garbin, veio ao mundo em uma quinta-feira ensolarada de 2012.

“Uma, duas, três ‘empurradas’ de perder o fôlego e, às 22h26, do dia 26 de julho, lá estava Clarice em nossos braços, em nossas vidas. Um pedacinho de nós, com 52 centímetros, 3.520 Kg e muito nariz. Era só nariz! Era também coradinha. Não choramos [ela se refere ao marido dela e pai de Clarice]. Só conseguimos ficar ali, olhando um pro outro, querendo entender a movimentação das obstetras, obstetrizes, pediatras, enfermeiros, tentando entender qual seria o próximo passo. Só consigo me lembrar do medo que senti quando percebi que estava – desculpem-me o trocadilho – redondamente enganada. O parto não era a conclusão de uma etapa. Era só o começo.

Os dias e meses que seguiram não foram nada fáceis. De repente a gente descobre que aquele amor que os que idealizam dizem acontecer de imediato, à primeira vista, na verdade é construído dia-a-dia, tijolo por tijolo e às vezes, fica sim diluído, pulverizado no meio das dificuldades mil que chegam com a maternidade. Na verdade, não chegam. Sempre estiveram ali, mas, digamos, saltam em sua cara, te cobram, exigem sem dó quando se é mãe.”

Garbin completa:

“De repente a gente percebe e se sente culpada por não se sentir plena. Mas como se sentir plena se não há troca? Você dá, dá e dá e dá e dá mais um pouco e só depois, aos poucos, devagarinho, descobre que dar sem receber é o que, de fato, define o amor incondicional.”

A tarefa de uma mãe de bebê é monótona, desgastante e sem recompensas ou reconhecimento do bebê, a curto prazo. O bebê é impiedoso em suas necessidades”, explica a psicanalista Iaconelli.

Ela também enfatiza as implicações de se deixar de ser gestante para se tornar mãe. Não é uma transição necessariamente tranquila.

“A perda do status de gestante é muito rápida e dolorosa. Reconhecer o bebê como uma pessoa e não como a imagem idealizada (que precisa ser construída na gestação como formas de desejar o bebê) é como lidar com um casamento arranjado. Mesmo que tenhamos as melhores indicações do noivo ainda assim não o conhecemos e, no entanto, ficaremos a seu inteiro dispor.”

Porão sem luz

Garbin descreve a depressão pós-parto como um calabouço para onde são jogadas as mulheres que não preenchem a maternidade romantizada. “Um porão em que várias[mulheres], num esforço de aceitação, tentam decorar com papel de parede cor-de-rosa as paredes úmidas e descascadas de um lugar onde não há, sequer, uma fresta de luz: a depressão pós-parto.”

Segundo a pesquisadora Mariza Theme, da pesquisa do Ensp, a depressão pós-parto traz consequências ao vínculo da mãe com o bebê, sobretudo no aspecto afetivo. De acordo com a Fiocruz, a literatura cita efeitos no desenvolvimento social, afetivo e cognitivo da criança, além de sequelas prolongadas na infância e adolescência.

“A mulher depressiva, normalmente, amamenta pouco e não cumpre o calendário vacinal dos bebês. As crianças, por sua vez, têm maior risco de apresentar baixo peso e transtornos psicomotores”, explica Theme.

A depressão pós-parto é descrita como “um quadro clínico severo e agudo que requer acompanhamento psicológico e psiquiátrico, pois devido à gravidade dos sintomas, há que se considerar o uso de medicação”, segundo a psicanalista Iaconelli. Pode começar na primeira semana após o parto e se estender por dois anos.

De acordo com ela, aparecem sintomas como irritabilidade, mudanças bruscas de humor, indisposição, doenças psicossomáticas, tristeza profunda, desinteresse pelas atividades do dia-a-dia, sensação de incapacidade de cuidar do bebê e desinteresse por ele, chegando ao extremo de pensamento suicidas e homicidas em relação ao bebê.

A depressão pós-parto é diferente da Tristeza Materna, também conhecida comobaby blues ou post-partum blues, um estado de humor depressivo e bastante comum, que costuma acontecer a partir da primeira semana depois do parto. “O que distingue é a gravidade do quadro e o que ele tem de incapacitante, afetando a funcionalidade da mãe e pondo em perigo seu bem-estar e o do bebê”, explica Iaconelli.

Além da necessidade de se cuidar da mulher, a depressão pós-parto é também um fator de risco para a saúde mental do bebê, alerta a psicanalista.

Alguns fatores de risco vêm sendo estudados por sua correlação com a depressão pós-parto, a especialista explica. Alguns deles são sintomas depressivos durante ou antes da gestação, histórico de transtornos afetivos, TPM, problemas de infertilidade, dificuldades na gestação, parto por cesariana, primeira gravidez, carência social, mães solteiras, perda de pessoas importantes, perda de um filho anterior, bebê que apresenta anomalias, desarmonia conjugal ou casamento em decorrência da gravidez.

Procura-se reconhecimento e empatia

Eu não sabia mais em que mulher estava me transformando. Quem eu era agora? Ao que tinha sido reduzida? Sentia que as pessoas só me viam como mãe. Mas por que se eu, Mariana, na minha diversidade de papéis, ainda estava ali? Fui negligenciada por todos os que estavam à minha volta. Foi assim que me senti e me sinto hoje, pensando no passado. Amigos, marido, pai, terapeuta, avó, irmãos. Eles não estavam preparados para me acolher fora desse estereótipo arraigado. Não foi culpa deles. Eu sei.”

Iaconelli lembra que perceber a necessidade de ajuda não é uma coisa óbvia. “A mentalidade de que a chegada de um filho é isenta de ambiguidade, tende a dificultar o auxílio que estas mães precisam receber. Algumas mulheres não conseguem admitir para si mesmas que merecem ajuda, escondendo dos cônjuges e da família seu estado.”

Três meses e meio depois do parto, Garbin ligou para a obstetra, após ser alertada pela sogra, que havia comentado: “Tem alguma coisa errada. Criar um filho é difícil, mas não é esse sofrimento todo que você está vivendo”.

Ela, que tinha ganhado 25 quilos na gravidez, já tinha perdido 32. A obstetra recomendou medicação.

“Eu não vi esperança ali, naquelas drágeas. Pra mim, nada me tiraria daquele buraco negro. Um mês depois, exato um mês depois, no dia 10 de novembro de 2012, me senti renascendo. Tive vontade de voltar a dirigir, de conversar, de ir ao mercado. Não tinha mais dúvidas: sofria também de um desequilíbrio químico. Meu cérebro, meu corpo, minha alma e meu coração precisavam se reorganizar. Era uma soma, um contexto complexo. Não era só Clarice que esperava cuidado, acolhimento. A minha condição e de tantas outras mulheres exige o mesmo zelo.”

Iaconelli recomenda que as mães com depressão pós-parto participem de grupos terapêuticos, onde possam compartilhar o seu sofrimento com outras mulheres em igual situação e sob orientação de um profissional. Quem preferir, pode buscar um atendimento psicológico individual. Além disso, ela afirma que o acompanhamento psiquiátrico é indispensável. É o psiquiatra quem vai indicar e acompanhar o uso de medicação pela mãe.

“Pensar que já nascemos prontos para algo na vida e que devemos seguir regras e expectativas correspondendo a construtos sociais pode, aparentemente, funcionar nas novelas, nos livros de autoajuda ou nas propagandas de televisão, mas na ‘vida real’, isso pode ser um dificultador diante de uma experiência amorosa e subjetiva, única, como a maternidade”, pondera a psiquiatra Camillo.

Garbin buscou tratamento. Mais tarde, percebeu que outras mulheres sofriam situação semelhante à dela e precisaram ser medicadas. Ela notou que essas “confissões” só vinham na forma de sussurros, o que a fez ter ainda mais vontade de gritar. “Sofrem em silêncio, quase sempre, num estado de negação corroborado pelos que estão em volta”, lamenta.

Ela diz que Clarice está prestes a completar 4 anos. A relação com a filha está cada dia melhor. Esta é a realidade das duas, e ela é bem diferente da propaganda de fraldas. Ambas estão construindo uma relação que sempre vai precisar de cuidado, carinho, empatia e erros na receita.

“Clarice, nossa história, filha, me faz sentir imbatível. Que continuemos juntas e cúmplices, a desbravar, destemidas e livres, essa imensidão desconhecida que nos espera. E que ninguém se sinta no direito de nos dizer quem somos.”

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