Dia de celebrar Sueli Carneiro

Hoje é dia de uma das mais importantes intelectuais brasileiras e estou grata por tê-la entre nós. Sueli Carneiro completa 70 anos, com uma trajetória de formulações e lutas fundamentais para compreendemos o Brasil e enfrentarmos os principais desafios do país.

Sueli Carneiro é uma filósofa, escritora e feminista negra brasileira, fundadora do Geledés – Instituto da Mulher Negra, uma das organizações de maior importância e intervenção epistêmica e política no país. Em seu doutorado, “A construção do outro como não ser como fundamento do ser”, desenvolveu o conceito de “dispositivo de racialidade”, operador da naturalização de papéis sociais, a partir dos conceitos de “dispositivo” e “biopoder” de Michel Foucault. Um dos seus textos mais emblemáticos, entre vários, é “Enegrecer o feminismo”, que questiona a universalização da categoria mulher na sociedade.

Em um encontro no qual a homenageamos, no ano passado, Sueli Carneiro disse a mim e a algumas companheiras negras que, durante algum tempo, se colocou a questão sobre a continuidade da luta feminista negra no país e que ficou imensamente animada quando viu a renovação acontecer. Ela nos perguntava “onde vocês estavam?”. Estamos aqui, Sueli, para te celebrar, para celebrar a memória de tantas intelectuais negras que já se foram e que ainda aqui estão, como Lélia González, Beatriz NascimentoLuiza Bairros, Lucia XavierJurema Werneck, Cida Bento, entre tantas outras mulheres negras que, se são base da pirâmide das desigualdades, são, também, fundamento das transformações radicais de que nosso país tanto necessita.

No final de 2018, a filósofa Djamila Ribeiro criou o ‘Selo Sueli Carneiro’, com o lançamento do livro “Escritos de uma vida”, que reúne artigos fundamentais para entendermos o Brasil formulados por Sueli Carneiro. Que alegria festejar as nossas quando ainda estão conosco! Muito me orgulha ser autora do livro “Encarceramento em massa”, título de uma coleção, a Feminismos Plurais, sob a curadoria editorial do selo que leva o nome de mente tão brilhante.

‘Encarceramento em massa’, livro de Juliana Borges Divulgação/Divulgação

Sueli Carneiro também é pura generosidade e estabelece com a nossa geração um processo de troca ativa, de construção lado a lado, sendo assertiva quando necessário – não me esqueço jamais quando escrevi para uma revista de direitos humanos que teve Sueli Carneiro como curadora e do que senti quando meu texto retornou com caixas de comentário levando seu nome. Ela tinha me lido! – compartilhando e incentivando formulações e sendo explícita ao dizer que está passando o bastão. Veja, não é muito tranquilo receber essa tarefa de uma pessoa com a trajetória de Sueli Carneiro, mas ela diz, com sorriso no rosto, sempre que nos vê: “Eu estou passando o bastão. A tarefa é de vocês”. Após escutar isso, minha espinha sempre congela. Não por medo da tarefa, mas por compreender a responsabilidade dela. E a generosidade à qual me referi emerge nesse momento, já que essa “passagem de bastão” não é feita de modo negligente, pelo contrário. Sueli Carneiro sabe que isso é processo. Então, apresenta acúmulo, estimula a fala, escuta ativamente e retorna síntese. O processo de troca não é mera palavra jogada ao vento. A construção política e epistêmica é dialética, é dinâmica.

Ano passado, pude participar de encontro em sua homenagem na terra de Zumbi dos Palmares. A ida já me causava imensa ansiedade, seja porque iríamos tê-la conosco durante toda o encontro, seja porque vi, em meu ticket de viagem, que faríamos o trecho de ida e volta juntas. Não tive muito como esconder e contei do meu nervosismo sobre pegar avião. Em todo o trajeto até Maceió, Sueli me perguntava se estava tudo bem. Sem contar a experiência ímpar de conhecer o Quilombo de Palmares e andar sobre aquele solo descalças e juntas.

A grandeza de Sueli Carneiro está em todos esses momentos. Seja em seminários grandiosos, seja em momentos menores, cotidianos e que se tornam sempre momentos de afeto e câmbios ricos de inteligências e construção de estratégias.

 

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25 de Julho: dia da mulher negra latino-americana e caribenha e dia de Tereza de Benguela. Data instituída em 1992, no I encontro de mulheres negras afro-latinas e afro-caribenhas; e em 2014 por lei sancionada pela presidenta Dilma Rousseff. Ambos os marcos fundamentais e simbólicos da resistência de mulheres negras que tem produzido epistemologias e tecnologias de reinvenção da existência negra nas Américas. Por isso, a #dicaliterária2019 de hoje é de uma destas pensadoras fundamentais para estas técnicas de ação e saber radicais e decoloniais: @carneiro956. “Escritos de uma vida” é livro fruto do acúmulo de anos de observação, reflexão e produção de conhecimento de uma das intelectuais brasileiras mais importantes. Livro para se ler devorando, eu chamo atenção para três artigos, sem perder de vista que todo o conteúdo dele é base para formulações e ações em políticas públicas que intentemos em produzir, são eles: “Tempo feminino”, no qual a filósofa reflete sobre o tempo e sobre a necessária “passagem de bastão” entre gerações feministas; “Ideologia tortuosa”, que considero um marco para a compreensão da ideia de “identidade política” da negritude; e “Mulheres Negras e poder: um ensaio sobre a ausência”, no qual, a partir dos exemplos de Matilde Ribeiro e Benedita da Silva, a autora discorre sobre como os mecanismos da branquitude se movimentam para impedir que pessoas negras, mas fundamentalmente e de modo implacável, mulheres negras ascendam a espaços de poder e da falta de isonomia no tratamento para equívocos ou erros cometidos por mulheres negras no comparativo a homens brancos nos mesmos espaços. O último artigo, em especifico, me remete a momentos de minha vivência pessoal, posto que já ocupei um cargo de importância na gestão pública como Secretária Adjunta de Políticas para as Mulheres na Prefeitura da maior cidade do país. Falo pouco ou nada sobre isso, mas vivi na pela o exercício da imagem de controle sobre mulheres negras como sempre “fora do lugar”. Livro essencial com prefácio de @conceicaoevaristooficial e apresentação de @djamilaribeiro1. Sueli Carneiro. Escritos de uma vida. #SeloSueliCarneiro. @polenlivros, 2019. #livros #diadoescritor

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Se você ainda não conhece essa intelectual, faça esse incrível favor a você mesma. Sueli Carneiro não fornece ferramentas de reflexão e ação apenas sobre e para mulheres negras. Ao falarmos que sua produção discute fundamentos, estamos falando que sua base de pensamento contém radicalidade analítica e propositiva. Ou seja, Sueli Carneiro está falando de todas nós, de um sistema de opressão e dominação que constrói mulheres negras como o outro e que isso impacta em como mulheres brancas também se verão na sociedade.

A obra de Sueli Carneiro como fonte de produção científica e intelectual, e também de ação política feminista, é um instrumento de transformação social profunda. Sueli Carneiro reflete sobre o mundo, sobre todas nós. Por isso, somos imensa gratidão a essa expressão de intelectual e de luta que temos conosco e que podemos celebrar. Que muitos outros dias de Sueli Carneiro venham! Ea!

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