Elza Soares e Sueli Carneiro nunca deixaram de sorrir em meio a suas batalhas

Que semana especial, amigas e amigos. Os atabaques estão assentados, a mesa está farta, a alegria contagia as palavras deste texto que celebra duas mulheres fundamentais para a construção de um futuro justo, altivo e diverso. Brindemos, contemos suas histórias que atravessarão os tempos, as gerações, imortalizando-as junto aos ancestrais que nunca deixaram de sorrir e festejar em meio às guerras e batalhas pelo povos oprimidos.

Elza Soares, linda, gigantesca e única fez 90 anos no dia 23. Nasceu pobre e passou por ataques e dores inimagináveis na sociedade racista que a elegeu como “inimiga do Brasil”. Enfrentou bravamente, com a humanidade, altivez e dignidade de uma rainha. Ao se apresentar pela primeira vez, aos 13 anos, num programa de auditório, o apresentador, ao vê-la com roupas simples e franzina, perguntou: “De qual planeta você veio?”. Ao que ela respondeu: “Do planeta fome”. Sua voz perfeita, sua vasta produção e inspiração a todas as mulheres negras a faz imortal. Possui o título de “cantora do milênio”, merecidamente concedido a quem é uma entidade na Terra, a quem alimentou pessoas como eu, famélicas no Planeta Fome do racismo. Por tudo o que representa para mim e para o país, não consigo descrever a honra quando me convidou para avaliar em primeira mão seu álbum “Deus É Mulher”, uma obra de arte dentro de seu museu de preciosidades para a cultura brasileira e resistência do povo negro. Feliz aniversário, diva brasileira, obrigada por tudo, por toda a sua imensidão. Que seu ano seja próspero em todos os sentidos, com muita alegria e paz.

Simplesmente não teria chegado aonde cheguei se não fosse por Sueli Carneiro, que completou 70 anos no dia 24 de junho.

Minha vida se mistura em episódios marcantes para minha caminhada guiada pela liderança dessa grande mulher. Quando ela não me conhecia, era só uma jovem de 18 anos e comecei a trabalhar na Casa de Cultura da Mulher Negra de Santos, organização à época liderada pela grande Alzira Rufino. Era jovem e observava as mais velhas traçando estratégias fundamentais para a resistência do povo negro brasileiro. Sueli Carneiro chegava, e nós, mais novas, ficávamos admirando de longe. Quando estava perto, eu congelava de tanta adrenalina e reverência à comandante da guerra. Bons tempos de aprendizado com quem lidera pelo exemplo.

Nessa organização tive contato pela primeira vez com a literatura da mulher negra. Na biblioteca Carolina Maria de Jesus, tomei contato com os escritos de Lélia González, Jurema Werneck, Neusa Sousa Santos, Nilza Iraci, entre tantas outras e Sueli Carneiro.

“Enegrecendo o Feminismo”, “Mulher Negra”, “O Poder Feminino no Culto aos Orixás” e tantos outros textos dela foram decisivos em minha trajetória. Seguindo sua trilha, caminhei. Fui ser mãe, guerreei e festejei as vitórias até reencontrá-la, já nos meus 30 anos.

Num momento decisivo, quando estava envolta em toda a energia de confusão das redes sociais, uma novidade naquele momento, minha visão estava turva pelo deslumbre causado por essas disputas em posts e “tretas”. Em dado momento, antes de um evento, estava com Sueli e mais uma dezena de pessoas num camarim.

Distraída em minha vaidade, fui pega de surpresa quando Sueli comandou que todos que lá estavam, menos eu, deixassem o recinto, ao que foi obedecida imediatamente. Sueli olhou em meus olhos e disse “você vai sair dessa confusão de internet, vai cuidar da sua vida, vai terminar o mestrado e vai construir”.

A dura salvou minha vida e não tenho nem como agradecer. Como canta Zeca Pagodinho, “Na hora que a gente menos espera/ No fim do túnel aparece uma luz/ A luz de uma amizade sincera/ Para ajudar carregar nossa cruz/ Foi Deus quem pôs você no meu caminho/ Na hora certa pra me socorrer/ Eu não teria chegado sozinho/ A lugar nenhum se não fosse você”.

Nos encontramos tantas vezes, colecionamos outras histórias. Hoje, coordeno um selo em sua homenagem. Estou doida para ler a biografia que a escritora Bianca Santana está preparando sobre Sueli e, quando essa pandemia passar, tenho certo que festejaremos mais um pouco. Feliz aniversário, Sueli Carneiro, que os orixás abençoem sempre seu caminho. Ogunhê!

 

Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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