Viva Sueli Carneiro!

Enviado por / FontePor Bianca Santana, do ECOA

Pelos documentos, o aniversário é amanhã, no São João. Mas o nascimento foi dia 23 de junho de 1950. Por 69 anos, a maratona de comemorações do aniversário de Sueli Carneiro, como brincam seus irmãos, durou dois dias. Mas em 2020, apesar da pandemia, são 70 anos a celebrar. Graças a um erro do Google, felizmente já corrigido, os parabéns começaram há 10 dias. E há programação na agenda até o final de junho. Teremos, então, quinze dias de festa online, no mínimo.

A ativista responsável por enegrecer o feminismo no Brasil diz que não confia tanto assim na humanidade, mas vai lutar sempre contra quaisquer formas de opressão, como faz desde menina. Apaixonada pelo pai, Zé Horácio, não hesitava em enfrentá-lo na defesa da mãe e dos irmãos. Depois do golpe de 1964, foi uma das adolescentes a organizar uma passeata pelas ruas da Freguesia do Ó. Estudante da Filosofia na década de 1970, vivia entre assembleias e reuniões do movimento. “Quando todos os alunos negros da USP cabiam em uma kombi”, como brinca Rafael Pinto. “E ainda sobrava lugar”, completa Sueli.

Antes mesmo do Coletivo de Mulheres Negras, fundado em 1983, e da atuação no Conselho Estadual da Condição Feminina, Sueli Carneiro já tinha ficha no DOPS. A informação pública no prédio do Arquivo do Estado de São Paulo diz apenas que era estudante de psicologia, o que nunca foi. Mas no sistema de informação do Arquivo Nacional há 37 registros de atividades de que Sueli participou no início dos anos 1980. Certamente há mais nos órgãos de repressão, nunca tornados públicos. Difícil acreditar, por exemplo, que os milicos não soubessem que o jovem casal, Sueli Carneiro e Maurice Jacoel, abrigava pessoas na clandestinidade em seu apartamento na Bela Vista.

A resistência ao regime militar no Brasil é também negra e Sueli Carneiro fez parte dela. Mesmo que no ato de fundação do Movimento Negro Unificado, em 7 de julho de 1978, estivesse diluída na multidão, sem microfone na mão ou qualquer protagonismo. Do mesmo modo que no Tribunal Bertha Lutz, em 1982, estava entre as meninas pretinhas desconhecidas a aplaudir Abdias do Nascimento denunciar que não havia mulheres negras naquele primeiro dia de programação do encontro feminista. E na Biblioteca Mário de Andrade, quando se encantou ao ouvir Lélia Gonzalez pela primeira vez, dando nome ao sujeito político específico que lutava contra o racismo e também contra o sexismo: a mulher negra. Nas paredes cobertas de madeira do auditório da Mário, Sueli sabia o que queria ser quando crescesse. Da sensação de que Lélia podia ouvir sua mente, seu coração, e verbalizar o que ainda não estava organizado racionalmente, Sueli Carneiro viu o que era necessário fazer: atuar politicamente pelas mulheres negras.

E então nasce a Sueli Carneiro conhecida pela maior parte das pessoas. A ativista que enegreceu o feminismo no Brasil. A intelectual que publicou o primeiro livro em 1985, desagregando, de forma pioneira, os dados de gênero, classe e raça em suas análises. Uma das fundadoras de Geledés – Instituto da Mulher Negra. A escritora de textos de jornal, artigos acadêmicos, tese com a melhor introdução já feita na história (segundo eu mesma), que se recusa a ser escritora. A defensora de direitos humanos internacionalmente reconhecida e premiada. A visionária responsável pelo primeiro site de organização não governamental do Brasil, apenas um ano depois da chegada da internet comercial; que também apostou na criação do portal mais importante no debate de gênero e raça em língua portuguesa. Uma das responsáveis pelas vitórias na Batalha de Durban. A teórica que escreveu sobre dispositivo de racialidade e biopoder de maneira muito aprofundada no mesmo período em que Mbembe escrevia o ensaio Necropolítica que vocês adoram citar. A mulher negra que defendeu a constitucionalidade das cotas raciais no STF.

Forjada no ferro, Sueli Carneiro é da luta. E Luanda, a filha amada que gerou e pariu, sua prenda, sempre soube que dividiria a mãe com a luta política. Sofisticada, Sueli Carneiro combina cores e tecidos de roupas bem cortadas com colares marcantes. Elegante, faz o anel de madrepérola e prata dançar pelo indicador enquanto conversa. Está sempre com o rastafari impecável, ergue nariz e sobrancelha para buscar informações no iPad. Solta um suspiro antes de dar bronca. Sorri com os olhos nos elogios sutis que valem mais que qualquer prêmio. Gargalha alto levantando o queixo e o corpo todo. Ouve jazz e Milton. AMA futebol. Come com mais prazer que qualquer uma das tantas taurinas de sua vida.

“Não tenho mais nada para dizer. Tudo o que formulei já está escrito”, respondeu ao meu pedido de entrevista, no início de 2017. Quinze dias depois estávamos na sala de reuniões de Geledés, quando eu fingia para mim mesma que era normal estar à frente dela e repetia que estava tudo bem parecer idiota para Deus. Um mês depois, antes de lotarmos a Vila Madalena de gente preta para o debate de lançamento da revista Cult com Sueli Carneiro na capa, ela ralhou: “A gente não pode mesmo dar a mão para vocês. Onde já se viu lançar revista?” Foram muitas e muitas e muitas outras broncas desde então. Algumas de tirar o chão. Mas se ela tivesse conhecido Dona Polu, a avó idolatrada que me criou, entenderia por que eu sei que cada uma é amor. Agradeço pelas infinitas 160 horas de entrevistas acompanhadas de pão português e café quentinho. A segunda versão do texto da biografia está quase pronta. Mesmo. Lançar em 2020 vale como presente de 70 anos ainda, não vale?

Feliz aniversário, Sueli Carneiro. Não sei se pode ficar se declarando para as pessoas que a gente biografa. Mas eu amo você.

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