Dignidade! Meninas e mulheres em situações-limite – Por: Karen Polaz

Exemplos recentes. O mais notável, uma mulher de 87 anos, violada por dez homens. Sobreviveu. Outra, de 69, estuprada por três militares, tinha na vagina um pedaço de sabre. Está sendo cuidada há dois meses e suas feridas ainda não cicatrizaram. Quase perde a voz quando me conta que uma menina de 15 anos, raptada por cinco “interahamwe” (milícia hútu que perpetrou o genocídio dos tútsis em Ruanda, em 1994, e logo fugiu para o Congo, onde agora apoia o exército do governo do presidente Kabila), foi mantida na mata por cinco meses como mulher e escrava. Quando a viram grávida, expulsaram-na. Ela voltou para a família, que também a expulsou porque não queriam que nascesse em sua casa um “inimigo”. Desde então vive num refúgio de mulheres e recusou a proposta de um parente para que matasse o futuro filho a fim de que a família pudesse recebê-la. A ladainha das histórias do dr. Tharcisse me causa vertigens quando se refere ao caso da mãe e suas duas filhas violadas poucos dias antes na mesma aldeia por um punhado de milicianos. A mais velha, de 10 anos, morreu. A mais nova, de 5, sobreviveu, mas teve os quadris esmagados pelo peso de seus violentadores. O dr. Tharcisse rompe a chorar. (I)

Texto de Karen Polaz.

“Padres, são grandes os meus pecados”, eu disse para a cortina vermelha com flores brancas bordadas. Padre Nyoka, o padre que nos casara, disse: “Confesse, criança. Deus perdoa a todos”. Foi a primeira vez que falei do meu casamento. Contei à cortina tudo sobre Antoine [marido], mim e Fellyne [filha]. Levei meia hora para contar a minha vida à cortina. No fim eu disse: “Padre, eu tenho aids. Antoine passou para mim”. O padre tossiu. Ele deixou a igreja preencher o silêncio com sua sacralidade. “Criança”, ele disse, “o seu marido também tem aids?”

“Ele não foi testado”, disse eu. O padre respondeu: “Então, criança, não é verdade que ele tem aids”. Suas palavras foram ficando mais incisivas à medida que falava. Baixei os olhos: “Não.” O padre disse, rispidamente: “Então, que perversidade é essa que compele uma mulher a profanar o nome do marido, o nome de um herói nacional?” As palavras então se despejaram para fora de mim como se não quisessem mais ser minhas. “Padre, tenho sido uma mulher honrada.” O padre prosseguiu: “Se você tem sido uma mulher honrada, como explica essa perversidade que entrou em você?” Fiquei em silêncio. Como uma lágrima que cai, minha fé começou a deslizar para longe de Deus.

O padre Nyoka falou: “Não apenas o capitão [Antoine] Lemoyne é um herói da República Democrática do Congo, como o seu pai é o amado presidente desta mesma igreja”. Ele fez uma pausa, e o Sagrado Silêncio se interpôs entre nós. Quando falou de novo, sua voz era forte. “Maldita seja você por profanar o nome deles desse modo abominável, pois é o diabo dentro de você quem fala. É Satanás quem embebe o seu sangue com essa perversidade maléfica. Satanás está nas suas veias. Você é filha do diabo – uma filha da aids. Você não pertence mais a Deus.”

A cortina vermelha abriu-se bruscamente. O longo rosto do padre me encarava. Ele respirou fundo três vezes. Senti minha alma sendo sugada. “Saia deste lugar santo.” Ele se pôs em pé, acima de mim, e bradou: “Satanás, fuja desta igreja sagrada!” Ele apontou o dedo para a porta. E, da casa de Deus, eu fugi. (II)

Essas citações foram retiradas do livro ‘Dignidade!’, que traz relatos de nove escritores que vivenciaram situações-limite ao lado da equipe dos Médicos Sem Fronteiras (MSF).

 

A organização MSF foi fundada em 1971, na França, por um grupo de jovens médicos e jornalistas e, desde então, leva assistência médico-humanitária às populações em estado de crise, violentadas por interesses políticos ou militares, ignoradas pela mídia internacional, deixadas à própria sorte em meio à pobreza, guerras, fome, epidemias e preconceitos. Em suma, lugares onde o mundo lança o enorme peso de sua indiferença, aonde ninguém quer ir, ver, nem tampouco ouvir falar.

Os exemplos acima se referem à República Democrática do Congo, no continente africano, mas poderia tratar-se de outros locais cuja população se encontra em perigo, em situações de conflito, vitimada tanto por catástrofes naturais quanto humanas. A desgraça que desmantela vidas por onde passa castiga, sobretudo, crianças e mulheres. Nas regiões conflituosas do Congo, enquanto os meninos são raptados e ensinados a matar e estuprar, todo dia chegam meninas e mulheres violadas com bastões, facas, ramos, etc. aos centros de tratamento do MSF.

Os estupros, como já é sabido, pouco têm a ver com sexo, mas com ódio e poder. Ao se deparar com mulheres e meninas consideradas do grupo “inimigo”, homens as estupram, espancam e matam com o objetivo expresso de humilhar e desmoralizar os homens adversários, além de implantar a própria descendência em “território” inimigo, caso elas sobrevivam e engravidem.

O documentário ‘A Guerra contra as mulheres’ (Argentina, 2013), de Hernán Zin, mostra a vida de onze mulheres, vítimas de estupro nos períodos de guerra, em dez países da África, América e Europa. A violação sexual de meninas e mulheres é considerada uma estratégia de guerra bastante eficaz, sendo que seus corpos se transformam num verdadeiro campo de batalha. Como se nota, as relações se estabelecem apenas entre homens. O corpo-objeto das meninas e mulheres entra na roda para sacrifício, vingança e satisfação de homens, não importa a quais grupos eles pertençam.

 

Documentário ‘A Guerra Contra As Mulheres’ (em espanhol).

Não bastasse a violência brutal, alastram-se doenças em regiões pobres e/ou de conflitos armados como malária, cólera, febre amarela, infecções, desnutrição, tuberculose, aids. No caso da segunda história citada, a aids impera num lugar onde o uso do preservativo ainda é pouco difundido e aceito, em grande parte por resistência de homens em utilizá-lo. Ainda que em meio ao estigma social que esta doença gera, mulheres se apresentam mais para testes, enquanto homens continuam na negação e, por consequência, sem saber que são soropositivos ou recusando a doença, disseminam o vírus quando fazem sexo com suas companheiras ou estupram mulheres. Mulheres estão mais vulneráveis a contrair a aids, assim como são as que mais sofrem com o preconceito social contra os soropositivos, já que diferentes instituições sociais as veem como promíscuas e infiéis, tapando os olhos e os ouvidos para o fato de que elas são, quase sempre, as vítimas da história.

Relembrar que assim é a condição em que vivem, ainda hoje, milhares de mulheres no mundo traz à tona a importância de organizações humanitárias, como a MSF, que chegam a representar a única esperança de salvação de corpo e mente de tantas pessoas nessas regiões. Mas também nos leva a refletir sobre nosso/meu próprio feminismo, das demandas do meu feminismo privilegiado de mulher cisgênera, branca, escolarizada, heterossexual, sem deficiências físicas, que não vive em situação de pobreza nem de conflito armado, que conta com plano de saúde para prevenção e tratamento de doenças, que pode escolher com quem se relaciona afetivamente e com quem não quer se relacionar.

Relembrar essas mulheres do Congo significa nos fazer repensar pelo que e por quais grupos de mulheres também estamos lutando, para além dos avanços da nossa própria condição de vida e do nosso próprio umbigo. O recado parece nítido: “Está ruim para você, mas para tantas outras é pior ainda. Muito pior. Se existe inferno, elas chegaram lá”. Porque violência, fome, estupros, epidemias, estigma social, conflitos armados que destroem vidas, principalmente a vida de meninas e mulheres, não acontecem apenas no Congo. Qualquer semelhança com casos de conterrâneas brasileiras é mera realidade.

dignidade msf

Referências

(I) Trecho extraído do conto ‘Viagem ao coração das trevas’ de Mario Vargas Llosa (p. 12), que discorre sobre a situação de precariedade generalizada em cidades do Congo, especialmente a violência sexual sofrida por meninas e mulheres.

(II) Trecho extraído do conto ‘Makass’ de James A. Levine (p. 169-170), cuja narrativa fictícia conta a história de personagens e eventos reais envolvendo pessoas com aids no Congo.

DIGNIDADE!
Título original: Dignità!
Autores: Drauzio Varella (prefácio), Mario Vargas Llosa, Eliane Brum, Paolo Giordano, Catherine Dunne, Alicia Giménez Bartlett, James A. Levine, Esmahan Aykol, Tishani Doshi e Wilfried N’Sondé
Editora: LeYa
Ano de lançamento no Brasil: 2012

 

 

 

Fonte: Blogueiras Feministas

 

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