Por Machismo permanente no canteiro de obras

Enviado por / FonteEscreva Lola Escreva

Angélica me escreveu primeiro em 2011. Um ano depois, ela me mandou outro email, revoltada com o assédio que sofria no trabalho, um canteiro de obras, um grande empreendimento (ela narra algumas dessas coisas abaixo).

Na época, mandei o email dela pro Nelson, um leitor também antigo, professor universitário, que já numa das primeiras vezes que reclamei das grosserias na rua, sugeriu a leitoras que são alvo das chamadas “cantadas de pedreiro”: peçam pra falar com o engenheiro responsável e exijam um curso de capacitação para eles, para que esses profissionais aprendam que tal comportamento não é aceitável.

Ainda vou publicar as excelentes sugestões do Nelson.
Angélica tentou de tudo para que seu local de trabalho se tornasse menos opressor. Não conseguiu. O que segue abaixo é o seu relato, do final do ano passado.

parodia foto classica

Mas, antes, gostaria de tocar em mais dois pontos. Primeiro, que há cada vez mais mulheres na construção civil. Dos 3 milhões de operários no Brasil, 240 mil já são mulheres. É pouco, mas é um número que cresce a cada ano, e é uma nova opção de emprego para pessoas de pouca escolaridade (porque, adivinhe: quem ganha mais, pedreiro ou empregada doméstica?).

O outro ponto é que precisamos tomar cuidado com o preconceito de cor e de classe quando nos indignamos com asgrosserias na rua. “Cantadas de pedreiro” são um clássico, toda mulher que já passou diante de uma obra sabe como é isso, e a enorme maioria não gosta. Mas obviamente o pedreiro não é nem de longe o único profissional que se vê no direito de assediar desconhecidas
 
E eu já cansei de ver machista dizendo “Ain, se fosse um executivo te cantando você não ia reclamar!”. Ia, sim! Quando é um executivo de terno e gravata que diz “Vou chupar você todinha”, pode ter certeza que a mulher se incomoda! Ou você realmente acha que ela diz: “Opa, só se for agora?!”, só porque o sujeito tá carregando uma pasta?
Mas o que Angélica conta não aconteceu na rua. Aconteceu no trabalho. Ela mostra como é algo institucionalizado mesmo.
 
Desde que me formei em direito, a primeira boa oportunidade de trabalho que tive foi em um canteiro de obras. Eu tinha 24 anos na época, minha OAB estava saindo do forno, e a proposta era de um desafio: me inserir na promissora área de engenharia no Brasil para tratar desses grandes contratos.
Por quase cinco anos trabalhei em obras civis industriais. Esse ambiente é, geralmente, em áreas rurais, onde não há transporte público que atenda, não há opções para alimentação fora do canteiro de obras –- recursos providos pelas partes contratantes do empreendimento. Existe um “quase confinamento” das pessoas que ali trabalham, porque estas vêm de diversas partes do país, sejam gerentes, superintendentes, operárixs ou técnicxs em segurança do trabalho, com a missão de iniciar e concluir as obras dentro do prazo estipulado. Dessa forma, a vida no “trecho” (como é chamado esse ambiente de obras pelo Brasil e mundo afora) é como carregar a trupe do circo: todos se conhecem, estão longe de casa e de suas famílias. É um desafio.
A grande maioria das pessoas desse ambiente é de colaboradores diretos, mais conhecidos como “peões de obra”. O vocábulo não é o melhor, mas é a forma como elxs são tratados. O peão de obra é geralmente homem, jovem, negro ou pardo, nordestino, de qualificação educacional restrita, com baixa possibilidade de ascensão profissional, com raras exceções.
Eles são recrutados em suas cidades de origem e viajam por dias até chegarem ao local de obras, onde devem viver em alojamentos com outros milhares na mesma condição. Pelo fato de os salários serem baixos, muitos trabalham em turnos, finais de semana e feriados, não têm muito tempo para lazer. Quando têm, eles vão para os botecos e zonas da cidade mais próxima.
Agora, imagine um peixe em um aquário, que, de repente, é jogado em outro aquário. Essa era eu, chegando alienígena: mulher branca, com curso superior, jovem, advogada, solteira, argumentativa, inquieta. Era o oposto da regra: obra para homens, engenheiros ou peões, entre os dois extremos do autoritarismo e da subserviência (existe algo de militarizado na construção civil).
Aos poucos fui compreendendo melhor o ambiente. Mas uma situação era perene: o machismo. Apesar de as relações de gênero terem evoluído nos últimos anos, a questão em ambientes extremos como os da construção civil caminha lentamente, justamente por haver poucas mulheres inseridas e pelo veto à reflexividade. Poucas mulheres trabalham em canteiros de obra, em relação à quantidade de homens. Durante meu tempo em obras, vi esse número crescer muito, mas o preconceito é vencido timidamente.
As mulheres que trabalham em obras são, em sua maioria, cargos de serviços gerais e administrativos. Existem operárias, engenheiras, geólogas, médicas, advogadas, administradoras, biólogas, psicólogas, assistentes sociais. Essas mulheres exercem papéis importantes no canteiro, mas nunca em cargos de direção.saude no canteiro
É importante lembrar que o canteiro de obras é uma “mini empresa” com “mega efetivo”. A equipe de gestão do empreendimento irá priorizar os programas que garantirão algum certificado ISO ao projeto, fazendo campanhas de meio ambiente, de combate às drogas ou de prevenção de DSTs. Obviamente, é excelente que haja tais campanhas, mesmo que seja pelo lucro do patrão. Mas tratar de gênero é uma barreira complexa, visto que, nesse ambiente, machista na origem, debater essa questão não tem nada a ver com obra e muito menos com o lucro do empreendimento.
Algo que sempre me incomodou foi que peão de obra mexe com mulher.
Eu, assim como qualquer mulher que já passou na frente de alguma obra (que seja desde uma pequena reforma na pavimentação em uma rua de bairro, até um empreendimento industrial que dispõe de um efetivo de mais de 3 mil trabalhadores), sempre soube que “peão de obra mexe com mulher”.
Na última obra em que trabalhei, comecei a me incomodar de verdade com essa situação. A hora do almoço, em que era necessário caminhar para ir ao refeitório, tornou-se o horário mais crítico para mim. Eram diversos tipos de ofensas/ cantadas nojentas/ apelos de sexo explícito que escutávamos por sermos mulheres e querermos ir almoçar no refeitório. Nesse caminho comecei a mobilizar alguns colegas de trabalho para que reparassem na quantidade de grosserias que todas as mulheres recebiam naquele trajeto.
Foram mais de dois meses atentando todas as mulheres e homens do meu meio de trabalho acerca dessas grosserias, tentando explicar que aquilo era uma violência, sem êxito. Pessoas chegavam a me dizer que eu estava fazendo uma tempestade num copo d’água, que os homens estavam apenas “elogiando”, e que nada daquilo que eles estavam falando era ofensivo o suficiente para eu considerar violência.
A situação que me desmontou aconteceu em uma semana de novembro de 2012, na qual centenas de trabalhadores estavam no processo de admissão, devendo cumprir todos os treinamentos exigidos pela empresa. Os treinamentos eram ministrados em um contêiner na área dos contêineres dos escritórios administrativos. Ao longo dessa semana, todos os dias, havia uma multidão de colaboradores entre os contêineres, aguardando em fila a chamada.
Nesses contêineres trabalhavam todas as pessoas da administração, onde se concentrava a maioria das mulheres. Todas as vezes que eu precisava ir até a impressora pegar um documento, eu recebia “cantadas”. Cantadas porque eram várias, de vários deles ao mesmo tempo.
Às sete e meia da manhã, no trabalho, eu ouvia palavras nojentas: “nossa, que gostosinha… merece uma chupadinha” e por aí vai. Como eu não era a única mulher impossibilitada de sair da sala naquela semana, fui até as outras mulheres para saber o que elas pensavam disso. Todas achavam ruim e muito desgastante. Então, eu que sou mais despachada, respirei fundo e tomei a iniciativa de ir até o gerente da obra para abrir a discussão.
– Fulano, não ta fácil trabalhar desse jeito não. Toda hora que qualquer mulher passa entre as salas, escuta algo deplorável.
– Angélica, você não acha que está exagerando?
– Não estou, todas as mulheres compartilham da minha opinião, estamos todas ofendidas com esses abusos.
– Você já foi manipular as outras mulheres para que passem a se incomodar com algo que não incomoda ninguém?
– Não, Fulano, eu simplesmente estou relatando insatisfações gerais, só isso. Não precisa ser gênio para perceber que a incidência dessas ofensas é grande e que são ofensas sexuais. É impossível trabalhar aqui dessa forma, isso é violência e eu tenho certeza que você, na condição de chefe de todo mundo aqui, pode exigir que isso acabe, pelo menos aqui no escritório onde é mais fácil de identificar quem faz.

– Angélica, minha filha. Isso aqui é uma obra, não é uma biblioteca. Você já deveria estar acostumada. Ou deve repensar onde quer trabalhar…

Não respondi, não argumentei, não tive mais nenhuma reação. A violência (e isso eu descobri muito antes, mas naquele momento foi o flagrante delito) partia de todos os lados. E eu estava sozinha nessa guerra, teria que convencer até quem era violentada de que essas coisas poderiam acabar.

“O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”. Simone nunca esteve tão certa.

Depois desse episódio, comecei a perceber de forma muito sutil que aquelas situações estavam me desgastando muito, emocionalmente. Fiz algumas tentativas buscando o setor de gestão de pessoas da empresa, o psicólogo, a assistente social.
Eu realmente comecei a repensar onde eu queria trabalhar. Fui percebendo que, o que importava ali passava longe de tratar essas relações de gênero, até que chegou um novo chefe da obra.

Esse novo chefe já chegou afirmando, no primeiro almoço que tivemos para que ele conhecesse a equipe da obra: “Ah, você é uma dessas feministas?! Ha ha ha! Toda feminista é chata pra c*ralho! Você deve ser uma chata! Tá querendo casar!”. Em uma outra situação ele me chamou de feminista babaca em uma reunião formal, porque eu corrigi um documento que era destinado a uma mulher e iniciava com a frase “Prezado Sr.”, e eu alterei para “Prezada Sra.” – “Ah, essas feministas babacas!” Todos riram. Eu lacrimejei.

Eu durei mais uns dois meses no canteiro de obras após o advento do novo chefe. Ele me odiava. E eu o odiava. Implorei uma transferência para a sede da empresa. Consegui. Na sede eu tinha tudo que facilitava, não morava na obra, poderia crescer e estudar com mais facilidade.

Refletindo sobre isso, saí da empresa no meio do ano de 2013 e decidi direcionar meu trabalho e a minha carreira dentro da mesma área de contratos de construção, mas no âmbito de soluções pacíficas de controvérsias, já na área pública.

Eu não abandonei essa luta. Saí sem processar a empresa por qualquer tipo de assédio nesse sentido. Eu saí com o desejo de nunca mais ter que passar por aquela condição de novo, de nunca mais ter que argumentar o óbvio com aquelas pessoas.

Eu só não quis mais me expor em um ambiente que não tem cognição e reflexão suficientes para atenuar a hostilidade. Mas acredito que, lentamente, tende a melhorar. Quanto mais se falar sobre feminismo na sociedade, nas escolas, empresas, instituições no geral, mais cresce a reflexividade sobre o tema. Um dia a opressão será vista como chata pra c*ralho, e não a feminista que denuncia essa opressão.

 

 

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