Nos últimos anos diversos autores, pesquisadores, ativistas e jornalistas, têm se dedicado à árdua tarefa de construir um campo teórico amplo que passeia entre campo, cidade e floresta, capaz de aprofundar conceitualmente direitos humanos, racismo e meio ambiente. Cada vez mais as formulações teóricas se encontram com a incidência política no chão dos espaços institucionais em busca da luta por direitos fundamentais.
Publicado pela Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG) em 2024, Multilateralismo ambiental e discriminação racial inaugura a coleção Diversidade e Política Externa. O autor, o diplomata e jurista Silvio José Albuquerque e Silva, parte de uma questão incontornável: como articular a agenda ambiental global às lutas contra a discriminação racial, num momento em que as crises climáticas e sociais se entrelaçam?
Silvio nos provoca e é generoso em trazer grandes e importantes referências intelectuais, mas também referências do movimento negro, que traçam trajetórias fundamentais na construção de políticas públicas que se misturam a parte acadêmica com o ativismo. O autor, com seu olhar cuidadoso, nos chama a responsabilidade de reconhecer os problemas gerados pelas desigualdades raciais e pela devastação ambiental.
Logo no primeiro capítulo, Albuquerque retoma autores como Antonio Augusto Cançado Trindade para mostrar que a defesa de um meio ambiente saudável é inseparável da proteção dos direitos humanos. O problema é que, na prática, os regimes de direitos humanos e os regimes ambientais seguiram caminhos paralelos, raramente se cruzando.
O autor insiste que essa separação é insustentável. Afinal, a devastação ambiental afeta de modo desproporcional grupos vulnerabilizados: populações indígenas, comunidades negras, moradores de periferias urbanas. No Brasil, a Constituição de 1988 foi pioneira ao afirmar o direito a um meio ambiente equilibrado, mas, como ele argumenta, os instrumentos internacionais ainda estão aquém de incorporar a diversidade humana como sujeito de direito.

Justiça climática e responsabilidade histórica
Um dos pontos mais fortes do livro é a análise da justiça climática, entendida como movimento que exige não apenas a redução das emissões, mas também a responsabilização de quem historicamente causou os danos e a reparação às vítimas. Albuquerque reconhece, porém, os entraves jurídicos: “um dos principais obstáculos (…) é a difícil comprovação inequívoca de vínculos de causalidade entre o dano causado ao ser humano por eventos climáticos extremos e um conjunto de ações ou omissões específicas”.
Essa tensão percorre toda a obra: como transformar em obrigação legal aquilo que, em termos éticos e políticos, já é evidente? A jurisprudência internacional ainda caminha devagar, mas decisões recentes de cortes de direitos humanos começam a reconhecer que degradação ambiental ameaça diretamente o direito à vida digna.
O racismo ambiental como tema de política externa
O capítulo dedicado ao racismo ambiental precisa de atenção. O autor mostra como comunidades racializadas sofrem com mais intesidade os impactos de enchentes, poluição e desastres, seja por viverem em áreas de risco, seja por estarem historicamente excluídas das tomadas de decisão.
Nesse campo, o papel de Geledés – Instituto da Mulher Negra têm sido de destaque. A organização tem marcado presença em conferências da ONU e nas Semanas do Clima, levando para o espaço multilateral denúncias sobre como a crise climática atinge de forma particular mulheres negras nas periferias urbanas e no campo. Geledés também tem pressionado para que a COP30, em Belém, seja um espaço de afirmação da centralidade da igualdade racial na agenda ambiental. E que as menções de afrodescendentes nos principais documentos de negociação sejam efetivadas, dando assim um primeiro passo para uma construção ampla da agenda de combate ao racismo ambiental na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima – UNFCCC. Essa atuação conecta a teoria do livro à prática viva do ativismo afrodescendente brasileiro, mostrando como diplomacia e sociedade civil podem, e devem, se complementar.
Multilateralismo ambiental e discriminação racial é obra ambiciosa. Ao propor integrar ambiente, direitos humanos e racismo, amplia o escopo do debate diplomático e fornece insumos valiosos para acadêmicos, juristas, diplomatas e movimentos sociais.
A política externa brasileira no campo ambiental e climático precisa, com urgência, reconhecer as estruturas de racismo e discriminação racial presentes em nossa sociedade. Como alerta Albuquerque, sua legitimidade será maior se houver diálogo amplo com a sociedade, sobretudo com entidades que representam os setores mais afetados pela crise climática e pelos danos ambientais. Ignorar essa dimensão não é apenas um erro político, mas também a perda da oportunidade de fazer o Brasil atuar de forma ética e efetiva no cenário global.
Há, contudo, desafios. A obra aponta a necessidade de responsabilização internacional, mas reconhece a dificuldade de transformar princípios em ações vinculantes. Além disso, ainda faltam estudos empíricos detalhados sobre casos brasileiros de racismo ambiental que deem mais concretude ao debate.
A importância do livro cresce à medida que o Brasil se prepara para sediar a COP30 em Belém, em 2025. O autor sugere que uma diplomacia climática que ignore desigualdades raciais corre o risco de repetir exclusões históricas sob nova roupagem. O eco das organizações negras na UNFCCC, com destaque para iniciativas como as de Geledés, reforça essa urgência: trata-se de disputar narrativas e políticas, garantindo que a transição ecológica seja também uma transição social com combate ao racismo ambiental.
Albuquerque nos lembra que a crise climática é também uma crise de justiça racial. Ao costurar essas dimensões com rigor jurídico e sensibilidade política, sua obra cumpre a função de provocar, denunciar e orientar.
Mais do que um ensaio acadêmico, trata-se de um chamado à ação. O multilateralismo, mostra o autor, só será legítimo se for capaz de enfrentar não apenas a emissão de carbono, mas também as estruturas de discriminação que determinam quem respira ar limpo e quem paga o preço da devastação.
E não poderia deixar de agradecer o Embaixador Silvio Albuquerque, por usar referências mais jovens no seu livro, como o livro organizado por mim Racismo Ambiental e Emergências Climáticas no Brasil (Oralituras: Instituto de Referência Negra Peregum, 2023), uma obra que também apresenta uma provocação ao movimento ambientalista branco, para que as desigualdades, em especial, o racismo seja tema central nas discussões climáticas, mas é principalmente a busca para que o Estado seja responsabilizado pela inoperância nos territórios vulnerabilizados.
O autor segue concluindo, o que aborda em todo seu livro, que ignorar o fator racial na agenda ambiental e climática não é neutro: perpetua desigualdades e nega direitos a comunidades negras, indígenas, quilombolas, ribeirinhas e aos moradores das periferias, entendidas, como lembra o geógrafo Milton Santos, como territórios urbanos excluídos ou segregados pelo desenvolvimento e pela dinâmica da urbanização brasileira. E o autor destaca ainda que a ausência de políticas que considerem essas dimensões estruturais compromete a legitimidade e a efetividade das ações climáticas no país. Reconhecer essas questões é, portanto, um passo essencial para políticas ambientais verdadeiramente justas e inclusivas.

Mariana Belmont é jornalista, pesquisadora, Assessora de Clima e Racismo Ambiental de Geledés – Instituto da Mulher Negra e organizadora do livro “Racismo Ambiental e Emergências Climáticas no Brasil” (Instituto de Referência Negra Peregum e Oralituras, 2023)