Independentemente de como você professa sua fé, pessoas pretas precisam pensar sobre ancestralidade.
Digo isso, porque os valores e os saberes do povo preto vêm sendo apagados ou embranquecidos ao longo da história, e o fundamentalismo religioso ganha força a cada dia e tem colocado no fronte irmãos como inimigos.
Ancestral é o que foi, o que é, e o que ainda será. Reconhecer o que é ancestralidade te permite saber de onde você veio e como chegou até aqui. É muito importante para compreender e pacificar algumas formas de sentir que nos foram negadas e, ao mesmo tempo, desconstruir outras que nos foram e ainda são impostas.
O desenvolvimento do continente africano foi extremamente prejudicado pelo tráfico de pessoas para a escravização, a qual não retirou aleatoriamente corpos do continente,, em verdade, houve uma seleção baseada nas habilidades e tecnologias de cada povo para construção e manutenção de vários países, muitos dos quais hoje são reconhecidos como desenvolvidos. O Brasil, por exemplo, teve como eixo de sustentação da sua economia a escravização de corpos negros, os quais também foram a base para a organização social, econômica, cultural e política.
A divisão da humanidade em raças estruturou o capitalismo moderno. O racismo sustentou a escravidão e, após a abolição formal da escravatura, deu suporte às desigualdades sociopolítico-econômica-culturais, determinando os papéis das relações no país, desaguando no genocídio da população negra nos dias de hoje. Com o tempo, os grilhões da escravidão, se transformaram, foram, naturalizados na ausência do Estado, na má distribuição de renda, na invisibilização, na marginalização, na discriminação, e tantas outras denominações que funcionam como limitadores, ou amarras, são correntes transparentes que atam a riqueza dos brancos à superexploração de negras e negros.
A escravização, assim como suas atualizações cotidianas, não ocorreu de maneira pacífica. Para garantir sua efetividade foi necessário afastar e desconectar pessoas negras de suas raízes culturais, afetivas e religiosas para enfraquecer o nosso povo e facilitar o processo de subjugamento e opressão. Para isto, foram utilizados instrumentos e técnicas como separação de núcleos familiares, o afastamento de pessoas próximas, proibição de práticas culturais como o canto e a utilização de idiomas da comunidade de origem, além da demonização do Sagrado.
Ainda hoje, ao ouvir o som dos nossos atabaques, a casa grande sente que seu sistema de opressão está com os dias contados. Eles pensam que sabem, mas nós é que sabemos e sentimos, de onde vem a nossa força e qual é nossa principal potência que possibilita a nossa (re)existência. Por isso, este cruel processo de tentativa de desconexão e distorção é o que fundamenta o racismo religioso que ainda tenta silenciar nossos atabaques.
A sobrevivência da hegemonia da branquitude depende de continuar se apropriando da cultura ancestral sem valorizar tudo o que se originou no continente africano. Essa desconexão, como tudo que vem de África, e a criação de uma África mítica, imaginária desconectada do tempo e do espaço, criou crenças limitantes que afetam nossas relações e a forma como vivemos e vivenciamos o Sagrado. Por isso, é que precisamos saber sobre a ancestralidade! A nossa fé nos possibilita acessar nossas origens mais remotas e reeditar expressões não colonizadas de humanidade. Nos dá condições de exercer o direito de ser a materialização dos melhores sonhos dos nossos ancestrais.
Assim, a preta pode ser doutora, o preto pode desempenhar a paternidade responsável, pretas e pretos podem se amar, podem reconstruir famílias extensas, podem enriquecer, podem recriar seus reinados e podem escolher os caminhos que desejam traçar. Nascemos livres e temos a herança ancestral do amor, do cuidado e do respeito, e para exercer a nossa liberdade de uma maneira genuína, precisamos compreender que a ancestralidade está além de uma religiosidade. Ela nos conecta a nossa história enquanto povo e nos torna irmãos e irmãs, que se reconhecem e respeitam suas diferenças e vivem o direito de se autodeterminar e construir projetos de mundo afrocentrados.
Lorena Borges é natural de BH, mulher negra periférica mãe de 3 meninos negros, advogada, candomblecista filha de Yemanjá. Ativista pela igualdade racial, Direitos humanos e desencarceramento; Defensora Popular formada pela Defensoria Pública de MG em 2017, Coordenadora cultural e de eventos Integrante do coletivo Juventude de Terreiro Cenarab MG, líder acelerada do programa Marielle Franco.
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