‘The Pieces I Am’ reconta a vida da autora de ‘Amada’ com entrevistas com Oprah Winfrey, Angela Davis e Sonia Sanchez
Bilal Qureshi, The Washington Post
Um documentário sobre a primeira escritora negra a receber o prêmio Nobel de Literatura, Toni Morrison estreou em Washington um dia depois de o Congresso realizar uma audiência sobre a questão das reparações históricas para os negros. Enquanto ouvia o depoimento do escritor Ta-Nehisi Coates perante o Congresso sobre o impacto permanente da escravidão, comecei a entender porque o cineasta Timothy Greenfield-Sanders disse ao público, na estreia do documentário The Pieces I Am, que “é o momento certo para Toni”. Ser perseguido pelos fantasmas do passado, viver com e entre eles é um mundo que foi tornado possível pela mente e a linguagem de Toni Morrison.
Aos 88 anos, Toni Morrison, laureada em 1993 com o Nobel, é uma força norteadora da nossa consciência nacional e opera no auge da linguagem e da clareza moral. Essa persona enigmática em parte foi criada por ela própria. Como disse Greenfield-Sanderes, ela tem evitado conscientemente a atenção pública e preza ferozmente por sua privacidade. “Alguém do nível dela não consegue trabalhar sem manter certa distância”, diz ele.
Nascida como Chloe Wofford em 1931, a escritora olha diretamente para a câmera enquanto conta a história da sua vida – desde sua infância em Lorain, Ohio, até chegar a editora na Random House, mãe solteira, professora e escritora. Dada sua ausência do público digital da minha geração, é uma dádiva “ver” Toni Morrison através das lentes de figuras como Angela Davis, Oprah Winfrey, o crítico Hilton Als e a poeta Sonia Sanchez entre outros. Como qualquer excelente documentário, o filme ilumina e entretém. É um banquete de música, imagens, conversas e, naturalmente, Morrison está no centro falando diretamente para você, luminescente, radiante e sábia como você imaginaria.
Em fevereiro a editora Knopf relançou uma coleção dos seus ensaios e discursos com o título The Source of Self-Regard, extraída de quatro décadas de escritos. Com uma capa cor de rosa com letras douradas, cada ensaio trata das mesmas questões com as quais estamos lutando em nosso discurso público hoje: desigualdade, supremacia branca, sexismo, imigração e o papel dos artistas na vida pública. Segundo Greenfield-Sanders, foi um alinhamento não planejado entre a editora e a distribuidora de filmes que tornou esta uma temporada interdisciplinar de retorno. Como leitor, não poderia desejar uma melhor combinação de fontes para revisitar Toni Morrison em 2019. A coleção de 350 páginas traça a formação das ideias da escritora, a amplitude dos seus interesses e seu dom prodigioso para a linguagem.
Morrison desentranha a dor corrosiva pública e privada da discriminação, mas sempre retorna à sua crença na capacidade do artista de imaginar o mundo de forma diferente. No ensaio que abre a coleção, Peril, que trata dos perigos da censura, ela escreve: “Alguns tipos de trauma vividos pelas pessoas são tão profundos, tão cruéis que, ao contrário do dinheiro, da vingança, e mesmo ao contrário da justiça ou das lutas, ou da boa vontade dos outros, somente os escritores conseguem traduzir e transformar a tristeza em significado, refinar a imaginação moral. A vida e o trabalho de um escritor não são uma dádiva para a humanidade, são uma necessidade.”
Tive contato com a literatura de Morrison pela primeira vez quando estava no ensino médio e era o crítico de cinema do Richmond Times-Dispatch e tive de fazer uma resenha da adaptação feita por Oprah Winfrey de Amada. Meus pais imigrantes haviam se estabelecido perto de Richmond, em uma pequena cidade onde nosso currículo escolar excluía amplamente os escritores negros, optando por uma história revisionista da Guerra Civil, considerada “uma guerra de agressão nortista”. A escravidão nas plantações era convenientemente tratada de modo superficial no panorama dos Estados Confederados da América. Foi minha primeira crítica focando este ensaio. Descrevi Amada como “confuso”, claramente sem ter a consciência histórica e a maturidade para compreender a fonte da minha profunda confusão. Foi apenas quando tive a atribuição de dar um seminário de teoria política na Universidade de Virgínia que comecei a entender o arco americano de injustiça e a ideia de julgamento e tormento moral.
Com uma capacidade narrativa extraordinária, Toni Morrison obrigou os leitores a confrontar a depravação e o terrorismo da escravidão americana, destruindo o cânone da língua inglesa no processo. Ao romper com o que ela descreve como a “narrativa mestra” dos brancos e dos escritores masculinos, ela viu a escravidão da perspectiva de uma mãe negra e ao mesmo tempo criou uma história fantasma singular. Numa seção de The Source of Self-Regard dedicada à arte de escrever, ela explica como decidiu desenvolver uma linguagem “consolidada na raça” mas livre da arquitetura existente de “raça”.
“Estou profunda e pessoalmente envolvida em decifrar como manipular, mudar e controlar a linguagem metafórica, para produzir alguma coisa que pudesse ser chamada de prosa livre de raça e específica da raça; uma literatura livre das limitações imaginativas impostas pela linguagem modulada por inflexões raciais à minha disposição.”
No documentário The Pieces I Am, ela relata como, quando era professora na Universidade de Princeton, insistia para seus alunos saírem das “suas pequenas vidas” para imaginarem as vidas dos outros. Num ensaio intitulado Goodbye to All That: Race, Surrogacy and Farewell, ela escreve: “Para mim, esse esforço para equilibrar as demandas de especificidade cultural com aquelas da gama artística é uma condição, mais do que um problema. É um desafio e não uma preocupação. Um refúgio e não um campo de refugiados. Um território doméstico, não uma terra estrangeira.”
É um exame crítico feito pela própria Morrison sobre como equilibrar a responsabilidade coletiva com a autonomia criativa numa época em o que o papel das “artistas mulheres” ou “artistas negras” vem sendo revisto por toda a mídia. Morrison explica que no centro do seu projeto artístico está o desejo de celebrar e se deleitar com sua negritude sem cair na armadilha da imaginação “de raça” e as limitações que isso cria para um artista.
Parece apropriado, portanto, o fato de Greenfield-Sanders integrar tantos artistas negros visionários e pioneiros em seu retrato cinematográfico. Evitando as convenções das biografias transformadas em filme, a câmera desliza por pinturas, fotografias e ilustrações enquanto os entrevistados falam sobre a vida de Toni Morrison. Os episódios da sua carreira são acompanhados pela série Grande Migração do pintor Jacob Lawrence, as silhuetas na plantação de Kara Walker e as fotografias da segregação de Gordon Parks.
The Pieces I Am é um monumento belo e inspirador. Desfrutamos melhor do filme em estéreo e combinado com a leitura das palavras de Morrison. Mergulhando em ensaios que repousam em cada um dos temas abordados no filme, fica evidente como a linguagem de Toni Morrison é a derradeira “fonte da autoestima”.
Como seria de esperar, Toni Morrison não está concedendo entrevistas e nem aparecendo nas sessões do filme sobre sua vida. Não é e nunca foi seu estilo. Mas Greenfield-Sanderes diz que quando ela assistiu ao documentário já pronto, fez um elogio à figura objeto do filme. “Gostei dela”, disse.
/ TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO/ Estadão