Pra começar: ressignificando as nossas vivências

Cidinha da Silva. Pra começar: melhores crônicas de Cidinha da Silva, volume 2. Kuanza Produções, 2019.

Por Amanda Lourenço, Do LeitorasPretas 

Capa do livro "Pra Começar: Melhores crônicas de Cidinha da Silva"

A escrita de Cidinha da Silva vem se consolidando de maneira cada vez mais forte na literatura brasileira graças à delicadeza poética das suas obras e ao impacto reflexivo-crítico que elas incutem nas leitoras dos livros já publicados – destaco, especialmente, os livros Cada tridente em seu lugar e outras crônicas e Um Exu em Nova York, ambos já resenhados aqui no blog. Analisando a trajetória literária da autora, nota-se uma produção voltada para o cotidiano da população negra em suas diversas camadas, que vão desde críticas sociais – movimento o qual acredito ser característico da sua postura militante – à exaltação da beleza cotidiana do simples existir enquanto indivíduo negro – situação ainda negada para nós. Embora esse fato seja latente nos vários gêneros textuais produzidos por Cidinha, acredito que as crônicas estão mais permeadas por isso, pois são textos de maior amplitude temática. É o que podemos perceber nos textos reunidos em uma de suas publicações mais recentes: Pra começar: melhores crônicas de Cidinha da Silva, volume 2.

Como o próprio título já anuncia, trata-se da reunião de vinte e um textos que representam, em alguma medida, o trabalho literário tão importante desenvolvido pela autora ao longo dos anos. Mesmo que alguns textos tenham sido publicados há mais de dez anos, como Cariocas do brejo, por exemplo, nota-se a atemporalidade da obra de Cidinha da Silva. Acredito que isso ocorre porque suas crônicas falam sobre temas fundamentais relacionados à existência, especialmente a do sujeito negro. A autora não cessa de nos fazer pensar e repensar, poeticamente, o que somos e o lugar que ocupamos na sociedade. Além da vivacidade dos textos, de antemão, logo se nota que a leveza da escrita de Cidinha é uma marca da sua produção. Toda vez que leio as crônicas dela, sinto como se estivesse ao meu lado, conversando comigo sobre a nossa negritude, sobre afetos, sobre injustiça social. Cidinha proporciona às suas leitoras uma experiência de familiaridade inigualável, algo pouco comum entre os escritores, inclusive os cronistas. A linguagem simples, os registros da oralidade e a abundância da coloquialidade não promovem apenas uma aproximação, mas reforçam, em alguma medida, a beleza que também mora na simplicidade do cotidiano.

Outra questão também evidencia esse movimento de aproximação entre escritora e leitora em Pra começar: a existência de crianças e adolescentes em boa parte das narrativas. Em algumas, assumem o protagonismo, como em Uma historinha de São João e A ocupação das escolas em São Paulo vira documentário; noutras são motes para o desenvolvimento do enredo, como em A coleção de dicionários de capa dura na estante. O uso de personagens infantis e juvenis nas crônicas parece nos propor uma reconexão com a criança e com o jovem que integra cada um de nós. Tal fato é interessante porque, ao retornar a essas fases iniciais da vida, passamos a compreender o passado e o presente, reconstruindo-os a partir de uma ressignificação das nossas experiências coletivas e individuais.

Além disso, outra questão recorrente nas crônicas está relacionada a um fato constante na nossa existência negra: o “apesar de”. Explico: os êxitos e as alegrias que temos estão sempre subordinados a essa conjunção concessiva, pois o racismo a todo instante age tentando neutralizar nossos sucessos e conquistas. Em A menina linda, uma mulher negra chega ao Ensino Superior, acessando um espaço que ainda lutamos muito para alcançar, e começa sua carreira estagiando em uma escola. No meio da felicidade desse processo, a protagonista se depara com a seguinte situação:

A última criança da fila, uma menina vivaz, penteada como bailarina russa, perguntou baixinho: ”Professora, posso te falar uma coisa?” “Lógico que sim, querida, conta!” Ela respondeu enquanto se agachava para ouvir a menina, que tocou levemente um de seus dreads, curiosa, como são as crianças e confessou: “Você é muito bonita apesar da sua cor”.

Um balde de chumbo caiu sobre sua cabeça. O sorriso desapareceu, uma ruga tomou conta da testa e ela só não desabou no buraco aberto no chão porque a professora titular se aproximou tocando o ombro da criança e desfocando a cena.

Ainda nessa crônica, a protagonista se questiona: “Por que a felicidade da mulher negra precisa ser guerreira, sempre?”. Dialogando com a ficção, quantas vezes já nos questionamos sobre isso? Quantas vezes deixamos nossas conquistas pessoais serem tomadas pela frustração imposta por esse “apesar de”? Por que a todo instante precisamos lutar inclusive nos momentos de felicidade e êxito? Mesmo que essas perguntas nos assombrem, as crônicas de Cidinha nos convidam a continuar resistindo a essas tentativas de neutralização.

Também vale destacar as duras críticas que Cidinha da Silva faz sobre as imposições racistas na sociedade – como, por exemplo, em Cenas da Colônia Africana em Porto Alegre – As lavadeiras e O cabelo dos meninos pretos. Esse último texto, especialmente, traz uma reflexão sobre como um esporte consagrado por atletas negros, apropriado pela branquitude posteriormente, tenta esconder a todo custo a negritude que faz parte dele. Além disso, também existem críticas contundentes no que tange ao modo como somos representados na literatura. Em Histórias da Vó Dita, a narradora faz uma revisitação às narrativas lidas durante a sua infância e nota aquilo que nós também constatamos ao fazer isso: a ausência de representação negra nas narrativas infantis. E quando não há ausência, há uma conveniência social na inserção de personagens negros nas estórias. Dessa crônica, fica reflexão sobre o que rege a ausência e a conveniência das representações negras, pensando na cultura como elemento importante para formação sociocultural dos indivíduos. Associado a essa temática, Espólio também trabalha com essas questões, principalmente, pensando numa tendência da branquitude de transformar a dor da pobreza que assola a população negra em poesia. Entretanto, há nesse texto uma resposta brilhante a esse racismo literário.

Antes de terminar esta resenha, acho importante também comentar sobre as crônicas que nos afastam dos estereótipos e nos humanizam. A afetividade negra expressa através do desejo de amor, em Vermelhor, e da paternidade, em Me oriente, rapaz!, são pontos chaves para esse processo de humanização. A construção e a difusão de saberes importantes que estão fora dos moldes elitistas da academia, caso de Honoris Causa. Também há uma valorização da beleza que reside na imaterialidade, como em Fiz minhas velhinhas ao mar. Outro ponto forte é a representação da mulher negra na arte, afastando-a da corriqueira objetificação, no caso de Luli Arrancatelha: modelo, manequim e funkeira. E não há como não cantarolar o pastiche A capa do mundo é nossa, poema-crônica de exaltação à beleza da atriz Lupita Nyong’o, eleita a mulher mais bonita do mundo em 2017:

Lupita sambará miudinho/ na cara da sociedade racista/ mais do que uma bela passista/ terá a elegância e a altivez de uma porta-bandeira

Embora todo o potencial do livro de Cidinha da Silva não tenha sido explorado nesta resenha, ele evidencia a profundidade e a qualidade da sua produção literária. Portanto, trata-se de uma leitura muito recomendável, especialmente porque essa coleção de melhores crônicas traz textos de livros que não foram reimpressos. Além disso, essa compilação é uma obra que nos inspira vários movimentos de começos: pra começar a ler mais autoras negras, pra começar a nos reaproximar daquilo que já fomos, pra começar a ressignificar nossas lutas e pra começar a enxergar poesia no cotidiano.

 

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